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Wilson Bueno da Costa

Os interesses por trás das notícias de ciência

Para se tornar um bom jornalista científico, não basta saber como se faz título e lead. É preciso ser capaz de identificar quem lucra com determinada informação, para não se deixar levar pelo marketing de governos ou grandes laboratórios. Politizar a cobertura de ciência e questionar os interesses envolvidos nas notícias são grandes preocupações do jornalista científico Wilson da Costa Bueno.

Professor das universidades Metodista e de São Paulo – onde ministra as disciplinas de jornalismo científico, jornalismo em agribusiness e meio ambiente, e jornalismo e saúde –, Bueno foi autor da primeira tese brasileira de doutorado em jornalismo científico. Nela, acusou a imprensa de colaborar com o jogo das grandes corporações. “Minha intenção será sempre superar a instância meramente técnica do jornalismo e estimular o senso crítico dos alunos”, afirma Bueno nessa entrevista concedida a Carla Almeida e Luisa Massarani, em julho de 2008.

Wilson Bueno conta como deixou a faculdade de matemática para se dedicar ao jornalismo e como enxerga, na Internet, um espaço importante para driblar o cerco da grande imprensa. Fala ainda sobre a cobertura atual de ciência – que considera, em geral, “omissa, burocrática e uma mera reprodutora de informações” – e sobre a necessidade de especialização, ainda que autodidata, do jornalista científico.

Leia aqui a biografia de Wilson da Costa Bueno

Como surgiu seu interesse pela ciência e pelo jornalismo científico?
Embora eu venha de uma família de profissionais da comunicação – meu avô paterno foi um dos pioneiros do rádio no Brasil, meu avô materno foi diretor de jornal e minha mãe trabalhava com publicidade –, eu escolhi cursar matemática na Universidade de São Paulo (USP). Naquela época, as pessoas estudavam direito, engenharia ou medicina, mas optei pela matemática. Depois que entrei na faculdade, a Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP lançou o curso de jornalismo e resolvi cursá-lo. Durante um período, acumulei duas faculdades, mas em seguida tive que optar por uma delas porque precisava trabalhar. Enquanto aluno, eu não podia ser professor de matemática, mas já podia trabalhar como jornalista. Naquele tempo, a carreira de jornalismo era muito menos concorrida, então comecei a atuar nessa área e fui obrigado a trancar a matemática.

Sua tese de doutorado foi a primeira sobre jornalismo científico. O seu mestrado já havia sido direcionado, de alguma forma, a esse campo?
Meu mestrado foi sobre jornal de interior, não teve relação alguma com jornalismo científico. Sou de Ribeirão Preto e senti na pele, na universidade, o preconceito contra o jornal pequeno. Quando fiz doutorado, porém, a Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) já tinha uma visibilidade maior, com a realização, inclusive, de um congresso ibero-americano de jornalismo científico em São Paulo. Então, pensei em conciliar as duas áreas pelas quais eu havia optado na universidade – o jornalismo e a matemática – e comecei a trabalhar com jornalismo científico, campo em que desenvolvi o doutorado. Foi uma forma de resgatar algo que eu havia perdido quando tranquei o curso de matemática, pois permanecia o meu gosto pela leitura científica, pelo método e pela filosofia da ciência.

Que atividades você desenvolve na Universidade?
No campo acadêmico foi mais fácil trabalhar com jornalismo científico porque pude orientar as primeiras teses na área. Comecei na USP há 36 anos e, na Universidade Metodista de São Paulo, há 26. Atualmente, na Metodista, já não oriento teses em jornalismo científico. Cuido apenas da área de comunicação empresarial, na qual abordo alguns aspectos do jornalismo de ciência quando analiso a comunicação dos institutos de pesquisa. Na USP, hoje, atuo apenas na graduação, com disciplinas eletivas que são oferecidas a estudantes de todas as carreiras da universidade. Tenho alunos de biologia, física, química, ciências sociais e economia, entre outros, nas disciplinas de jornalismo científico, jornalismo em agribusiness e meio ambiente, e jornalismo e saúde. Há muita demanda por essas aulas. Enquanto as matérias da ECA costumam ter 25 alunos por turma, as disciplinas que ministro chegam a ter 70 ou 80 alunos e, às vezes, tenho que dar aula no auditório.

É possível detectar se essas disciplinas tiveram algum impacto sobre os alunos?
Depois de concluírem essas matérias, alguns estudantes elaboraram seus trabalhos de conclusão de curso nessas áreas, outros começaram a trabalhar na Agência Fapesp, alguns ingressaram no mestrado de jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outros, ainda, criaram blogs na área. Mas também é possível notar um impacto no questionamento dos alunos diante da prática jornalística. A proposta das disciplinas é oferecer uma visão crítica sobre a cobertura de ciência, tecnologia, meio ambiente e saúde. Discutimos muito sobre os interesses – públicos e privados – envolvidos nas notícias e sobre os aspectos que condicionam a cobertura de ciência e o próprio sistema de produção científica no Brasil. Para isso, também analisamos publicações e vídeos. Nosso maior compromisso é com a perspectiva crítica. Vemos muitos releases, por exemplo, sendo vendidos como notícia científica por empresas de biotecnologia ou bioquímica. Por isso, é preciso chamar a atenção para o fato de que, além de saber fazer lead e título, é preciso enxergar os interesses que estão por trás da notícia.

Quando os cursos foram criados?
O de jornalismo científico tem mais de 20 anos. O de agribusiness e meio ambiente e o de saúde devem ter cerca de dez anos. É recompensador acompanhar o encontro e o debate entre jornalistas, biólogos, físicos e químicos. O jornalismo científico não deve ficar restrito a jornalistas. Eduardo Geraque, que escreve na Folha, é formado em biologia. Temos Ulisses Capozoli e Marcelo Gleiser, que são físicos, Julio Abramczyk, que é médico, assim como Drauzio Varela... Precisamos fazer parcerias com biólogos, físicos, astrônomos, cosmólogos etc. para divulgar ciência. A disciplina de jornalismo científico deixou de ser obrigatória porque concentrava apenas estudantes da ECA. Achamos mais rico reunir pessoas com perfis distintos. Hoje em dia, há muitos biólogos e físicos interessados em divulgação científica. É importante haver professores que possam orientar teses e trabalhos de conclusão de curso nessas áreas, porque estimulam os alunos a explorarem esses temas. Se não existissem professores, o aluno não faria essa leitura. Esse é o espaço que temo perder. Acabo de me aposentar na USP, mas permaneço com as disciplinas: quem vai ocupar a área? Não há, neste momento, quem me substitua, porque na USP é preciso prestar concurso para se tornar docente e ainda não surgiu outro professor interessado em manter esse trabalho.

Na época em que você se envolveu com jornalismo científico, quem eram as outras pessoas que trabalhavam na área?
José Reis, que foi presidente da ABJC; Julio Abramczyk, que também foi presidente da associação e continua escrevendo sua coluna na Folha de São Paulo; Silvio Raimundo, Demócrito Moura, Gastão Thomaz de Almeida, além de outros colegas já falecidos. Eles eram muito atuantes. Júlio e Demócrito trabalhavam regularmente. Silvio Raimundo escrevia para uma revista importante da época e Gastão tinha uma divulgação ampla na área agropecuária, assim como José Reis, que foi do Instituto Biológico e tinha uma relação íntima com esse campo. Há 30 anos, quase não havia espaço para o jornalismo científico na universidade. O fato de eu ter escrito a primeira tese na área demonstra que não havia gente na academia interessada nesse campo.

Há momentos em que há um aumento de intensidade na produção do jornalismo científico. A década de 80, por exemplo, foi um momento importante. Por que isso acontece?
Acho que essa oscilação se dá em função de alguns temas momentâneos que acabam estimulando uma divulgação maior. Os grandes temas daquela época eram a Guerra Fria e a corrida espacial, como hoje são as mudanças climáticas ou as células-tronco. Alguns espaços foram criados na década de 80, como o caderno de ciência da Folha de São Paulo e algumas revistas especializadas, como Globo Rural e Globo Ciência. Naquele momento, pensava-se que haveria um boom nesse campo, mas depois essa tendência regrediu. Às vezes, cria-se a idéia de que o interesse por ciência vai aumentar e gerar retorno. Assim, acredita-se que vale à pena criar um caderno específico de ciência porque vai atrair anúncios. Mas, em seguida, de uma hora para a outra, percebe-se que não é bem assim. Acredito que hoje vivemos o mesmo boom da década de 80. Há muitos espaços novos e muitos cursos, mas não sei se são sustentáveis e se serão permanentes.

Você comentou que a divulgação científica está num momento forte, mas o jornalismo científico, não. Por quê?
O jornalismo científico ainda carece de uma boa base de formação. Em alguns meios de comunicação, houve uma melhoria da qualificação profissional. Muitos jornalistas voltaram à academia e fizeram mestrado e doutorado, como o Marcelo Leite e o Eduardo Geraque, ambos da Folha de São Paulo. Hoje há uma massa crítica melhor em alguns nichos do jornalismo científico. Mas há muitos veículos, como os de rádio e televisão, onde há uma carência enorme de profissionais qualificados para atuar nessa área. Há exceções, obviamente, como o André Trigueiro, na Globo News.

A graduação, então, não provê essa qualificação...
Menos de 10% dos cursos de jornalismo têm algum conteúdo especializado e não me refiro apenas à ciência. Boa parte das universidades tem um trabalho muito tímido de divulgação da pesquisa e esse interesse não é estimulado nem na própria formação do pesquisador. Mas quem está no mercado há algum tempo procurou adquirir essa qualificação, cursando mestrado e doutorado. Isso gera uma relação melhor com a academia e facilita nosso acesso à comunidade científica. Essa tendência, no entanto, tem ocorrido apenas em certos nichos, talvez nos grandes veículos das grandes capitais – São Paulo, Rio de Janeiro e uma parte de Santa Catarina. Mas o interesse existe. A relação candidato/vaga do LabJor é muito maior que a dos cursos das universidades. Às vezes, são 50 ou 60 vagas para 400 ou 500 candidatos. O mesmo acontece com o primeiro mestrado em jornalismo científico, criado recentemente pela Unicamp. Mas o mesmo estímulo não ocorre na graduação. O ensino de ciências no Brasil não incentiva profissionais a buscarem o jornalismo científico. Cada vez menos pessoas têm interesse por cursar biologia, química ou física. A relação candidato/vaga dessas carreiras é cada vez menor, enquanto a evasão nos cursos torna-se cada vez maior. Isso significa que as pessoas não conhecem as opções de se trabalhar nessas áreas.

No seu curso de comunicação empresarial, como os institutos de pesquisa são abordados?
A falta de uma cultura de comunicação persiste nos centros de pesquisa. No Instituto Agronômico ou no Butantã, por exemplo, a figura do profissional de comunicação não está contemplada. O jornalista acaba ocupando uma vaga de assessor, para ganhar menos do que o salário mínimo do setor. Já na universidade, muitos acreditam que o estudante de jornalismo deve trabalhar de graça na instituição, porque se trata de uma oportunidade de aprendizado. Ou seja, esse espaço não é encarado profissionalmente. Em geral, não há estruturas montadas de atendimento às demandas dos jornalistas nos institutos de pesquisa. Portanto, nós temos uma cobertura reduzida de ciência. A impressão que permanece em alguns veículos é a de que, se criarem uma página de ciência, não haverá matérias suficientes para preenchê-la. Eles pensam que não há pesquisa no Brasil.

Há exceções? Quais institutos de pesquisa têm uma boa área de comunicação?
Um exemplo de instituição com uma estrutura de comunicação importante é a Embrapa, que conta com 140 profissionais de comunicação e 100 jornalistas, dos quais 50 têm mestrado ou doutorado. Poucas universidades brasileiras têm tantos mestres e doutores em comunicação como a Embrapa, que geram entre 700 e 800 matérias por mês. Tal competência em comunicação e tamanha massa crítica acabam gerando resultados. Isso ocorre em poucos institutos de pesquisa no Brasil. Tradicionalmente, há o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Fiocruz, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Museu Goeldi, que são pró-ativos em comunicação.

Na sua opinião, a divulgação de pesquisas deveria ser estimulada por políticas públicas?
O jornalismo científico deveria estar contemplado explicitamente nas políticas públicas, o que poderia estimular os institutos de pesquisa a formar estruturas de divulgação científica. Poucos pesquisadores têm relação com a divulgação, que é uma forma de legitimação do próprio trabalho. Isso não acontece no exterior, onde cada instituto se sente na obrigação de divulgar seu trabalho e prestar contas à sociedade.

Como você vê a postura dos pesquisadores em relação à divulgação científica?
No Brasil, a comunidade científica acha que a divulgação da ciência não é função do pesquisador. Não há políticas públicas que afirmem que o cientista precisa dar essa contrapartida. A divulgação ocorre na Revista Pesquisa Fapesp, por exemplo, onde muitos trabalhos financiados são publicados. Mas o mesmo não acontece na universidade. Nos programas de pós-graduação em comunicação, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) nos avalia mal se dedicarmos nosso tempo à divulgação. Se eu escrever um artigo para uma revista Qualis internacional, sou considerado um grande profissional. Mas se eu escrevo para o público e dialogo com a sociedade, isso é visto como um trabalho menor, o que gera preconceito. Isso significa que não há uma cultura de valorização da divulgação científica nem na Capes nem no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Não há como mencionar esse tipo de atividade na seção de produção científica do currículo Lattes, porque não é considerado trabalho científico. Na Universidade Metodista, quando se entrega uma tese ou dissertação, é obrigatório que o aluno redija também um artigo de divulgação, que vai permitir a multiplicação do resultado da pesquisa a outros locais. As financiadoras de pesquisa deveriam fazer o mesmo, porque é uma forma de compartilhar o estudo. Não temos uma cultura solidária de democratizar o conhecimento. Prevalece uma visão mesquinha e egoísta que tem a ver com o fechamento da comunidade científica nos laboratórios. Isso vem mudando um pouco, mas ainda há uma timidez enorme no trabalho de divulgação, devido à falta de políticas claras que valorizem a divulgação científica.

Como você avalia a atual cobertura de ciência?
O jornalismo, em geral, está cada vez menos investigativo e isso se estende à cobertura de ciência, que tem sido apenas uma reprodutora de informações. Os jornalistas científicos não investigam nem confrontam idéias. É por essa razão que não gosto do termo “tradução” aplicado ao jornalismo científico, porque leva à noção de que o objetivo desse tipo de jornalismo é traduzir o discurso dos pesquisadores. Mas o que fazemos é jornalismo, não é ciência nem aula de ciências. Além disso, falta humanismo ao jornalismo científico. Um exemplo positivo é o Globo Rural, onde as fontes da informação são pessoas normais, que conversam, interagem, abrem sua casa e mostram sua vida. Essa é uma boa solução para tornar as matérias mais interessantes, porque, assim, conversamos em vez de darmos aula. O jornalismo científico costuma ter esse viés didático, que o torna tedioso.

Você acha que tem conseguido alterar essa tendência através das suas disciplinas?
Friso muito que o jornalismo científico não deve ensinar ciência – mas divulgar ciência – e busco estimular uma visão crítica nos alunos, para que questionem a estrutura de produção da matéria e enxerguem além da notícia. Quando eles elaboram a tese, percebe-se que eles incorporam esses aspectos. Minha intenção é politizar a cobertura de ciência e mostrar que, ao ser acética e fria, acaba servindo a certos interesses. Minha preocupação é alertar que não se pode considerar ciência aquilo que é marketing de grandes corporações ou governos. Precisamos saber identificar quem pode estar lucrando com determinada informação. Na área da ciência, o jornalista acredita que os especialistas não têm interesse em manipular informações. Mas também existem cientistas e pesquisadores que estão comprometidos com interesses privados e isso precisa ser levado em consideração. É preciso mostrar que a ciência não é uma área neutra ou isenta. Também é questionável a matéria que só tem uma fonte – geralmente comprometida com a informação. A idéia é problematizar isso.

Essa visão é abordada na sua tese de doutorado?
Essa era a proposta quando fiz a tese, há mais de 25 anos. A Folha de São Paulo não gostou de eu ter acusado os jornais de colaborarem com o jogo dos grandes interesses corporativos ao divulgarem releases como se fossem notícias científicas. A mídia é muito pouco crítica sobre isso. A Folha, por exemplo, é capaz de produzir um editorial sobre o deslize ético da indústria tabagista e publicar, em outra página, o anúncio de um curso de formação para futuros jornalistas patrocinado pela Philip Morris. O Estado de São Paulo oferece o mesmo curso. Minha preocupação será sempre superar a instância meramente técnica do jornalismo e investir mais em estimular o senso crítico.

Como surgiram suas publicações digitais? Qual é a importância desses meios?
Comecei a lidar com internet há algum tempo e percebi que se tratava de um espaço importante para abordar esses temas. Primeiro criei o portal de jornalismo científico, depois o de jornalismo e saúde, o empresarial, e de agribusiness e meio ambiente. Hoje são 10 sites. Nunca tive patrocínio porque não quero transformar esses veículos em um negócio. Não são sites de notícias, são espaços para agregar informações, reunir fontes e artigos. Se alguém digitar “jornalismo científico” como palavras-chaves no site de busca Google, os dois primeiros links que aparecem no resultado são meus. Se for digitado “jornalismo científico” e “agribusiness”, todos os links que aparecem são de sites meus. Essa visibilidade é importante porque permite multiplicar as discussões sobre ciência, jornalismo científico, jornalismo em agribusiness, biotecnologia etc. Uma grande vantagem é dispor da internet – com grupos de discussão, cursos à distância, sites – para formar pessoas. Já são mais de mil os alunos dos cursos à distância de atualização profissional da Comtexto. Na área digital, é possível enfrentar os interesses das grandes indústrias – como a farmacêutica e a tabagista – com facilidade, pois podemos divulgar livros, artigos, idéias...

Como o meio digital teve impacto sobre o jornalismo científico?
A internet teve impacto sobre algumas áreas da cobertura de ciência, como o jornalismo ambiental. Hoje, nesse campo, há grupos de discussões importantes em vários estados do Brasil, que formam redes de nível nacional com desdobramentos também na América Latina e Caribe. Essas redes permitem a divulgação de fatos que ocorrem em áreas remotas, porque há jornalistas dispersos pelo país. Também existem grupos solidários, que fornecem fontes, informações, bibliografias e muito material que chega de fora via grupos de discussão. Então, em alguns nichos, a internet teve uma grande capacidade de mobilização e de expansão de mídias, que têm feito um bom trabalho ao driblar o cerco da grande imprensa. Mas, no jornalismo científico como um todo, há poucas opções. Existe um grupo de jornalistas de agronegócio se mobilizando no Paraná. Em saúde, há movimento nesse sentido, mas pouco. A mobilização via web também permite a organização de congressos, workshops e reuniões, que multiplicam o espaço de debates. O número de blogs tem crescido muito nessa área e no campo da divulgação científica. Por mais tímidos que sejam, são espaços importantes, preenchidos tanto por profissionais experientes como por jovens que estão se formando agora e que se preocupam com a divulgação da ciência. É muito recompensador perceber que há gente jovem oxigenando a divulgação científica, numa proporção às vezes maior do que ocorre com o jornalismo científico, mais concentrado nas mãos dos mais velhos.

Como a criação da ABJC e a sua atuação desde 1977 têm contribuído para institucionalizar o jornalismo científico?
Nesses 30 anos de existência, a ABJC tem dado uma contribuição menor do que deveria ao jornalismo científico. Por duas vezes fui presidente da associação e acho que sua capacidade de mobilização tem sido muito reduzida. Essa é uma auto-crítica que todos devemos fazer. A ABJC está muito aquém daquilo que podia realizar e se omitiu muitas vezes. Mesmo hoje, comigo na presidência, a associação tem feito um trabalho menor do que deveria e não tem cumprido sua função integralmente. Suas atividades são fragmentadas, não há infra-estrutura e não organizamos ações em âmbito nacional com a amplitude necessária. Ainda não definimos bem o seu foco. Falta sobretudo maior interação com os sócios, atualmente dispersos. A ABJC é um espaço vivo significativo, idealizado por profissionais de peso e por onde passaram muitas pessoas importantes, mas contribuiu pouco para proporcionar uma mediação entre comunidade científica, sociedade e escolas. Se mais sócios tivessem essa percepção, talvez arregaçássemos as mangas e começássemos a criar mais ações e estratégias que gerassem mais mobilização e pressão sobre instituições de pesquisa, comunidades e governos, para dar visibilidade maior ao jornalismo científico. Temos sido um pouco acomodados e omissos, mas essa é a minha opinião particular.

ABJC tem participado de eventos e congressos relacionados ao jornalismo científico? Qual é a importância desses encontros?
Apesar de sua estrutura limitada, a ABJC precisa estar presente em eventos do setor. Realizamos o IX Congresso Brasileiro de Jornalismo Científico na Fapesp em 2007, realizamos um encontro em Campina Grande e outro no Nordeste, desenvolvemos quatro atividades na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – dois minicursos e dois simpósios – e estivemos num evento importante na Alemanha. A ABJC precisa ter o compromisso de doar seu tempo e interesse para percorrer o Brasil e divulgar suas ações e o jornalismo científico. O trabalho feito na reunião da SBPC foi importante para conhecermos pessoas novas, dialogarmos com outros grupos, nos aproximarmos de alguns setores da comunidade científica e alinharmos novas parcerias. Também temos ido à Bahia, a Santa Catarina e a Rondônia para conversar sobre jornalismo científico, estimular novos alunos, agregar novos sócios e tentar montar alguma seção regional.

Quanto à formação do jornalista científico, qual a importância de se ter especialização?
Muitos dizem que para se fazer a cobertura jornalística especializada – e o jornalismo científico em particular – não é preciso ter formação específica. Eu discordo, porque o desenvolvimento da ciência e tecnologia obedece a uma cultura muito particular. Nesse campo, o jornalista trabalha com fontes que estão comprometidas com o trabalho de longa data e que são muito sensíveis à informação não-qualificada, o que demanda profissionais que dominem essa cultura e conheçam o método científico, o funcionamento do sistema de produção de ciência e a própria divulgação científica. É preciso ter noções de história, filosofia e sociologia da ciência. Portanto, não é algo que se aprende naturalmente, é preciso se especializar, ler e estudar, mesmo que isso seja feito de forma autodidata. Afinal, nem sempre se consegue fazer cursos na área porque não há muita oferta. Mas é necessário ter esse compromisso com a área. Eu sou a favor da especialização.

Como você avalia a oferta de formação acadêmica nessa área no Brasil?
É muito pequena, há o Labjor e o mestrado da Unicamp. Existem espaços em programas de pós-graduação e em alguns cursos específicos, como os da Fiocruz na área de saúde, em que se pode incorporar o jornalismo científico. É muito pouco, mas creio que tende a crescer na medida em que surja interesse na graduação, o que geraria demanda. A própria ABJC deveria fazer parcerias para estimular essa procura. Disponibilizar mais cursos é fundamental para formar quadros com rapidez e tornar o debate menos fragmentado. Fundações de Amparo à Pesquisa, CNPq e Capes deviam se preocupar em formar divulgadores e jornalistas científicos porque dariam visibilidade ao trabalho de ciência feito no país. Entre a população, ainda persiste a idéia de que no Brasil não se faz ciência, devido à falta de divulgadores nos institutos e nas universidades para dar suporte à mídia.

[Nota do editor: após a realização desta entrevista, outros cursos de especialização foram criados na área: o de Jornalismo Científico, modalidade a distância, da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), e o Curso de Especialização em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde, modalidade presencial, promovido em colaboração pelo Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, pela Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Fundação Cecierj.]

Na sua avaliação, que aspectos são importantes nessa formação?
Existe a vertente técnica da produção da matéria. Para motivar a pessoa a ler, ouvir ou assistir o programa de televisão sobre ciência é preciso usar certos formatos. O público não quer ter aula de ciências, por isso é necessário misturar entretenimento e certos recursos que facilitam a recepção do público. Aprimorar a parte técnica, então, é imprescindível. Outros aspectos fundamentais são: conhecer história da ciência e sociologia da ciência, ter noção do método e da cultura científica, saber identificar boas fontes, ter acesso a currículos e a bancos de dados, saber validar uma boa fonte científica, além de conhecer os grandes interesses envolvidos na produção e na divulgação de ciência. O jornalismo científico também exige comprometimento com a inclusão, com a cidadania, com o debate e com a democratização do conhecimento, para não resultar em algo ingênuo.

Qual é o papel dos cursos a distância?
Eles são muito importantes, porque estimulam a interação entre aqueles que trabalham e pesquisam nessa área. Além disso, permitem a capacitação de pessoas que vivem em localidades onde não há demanda suficiente de alunos para montar um curso presencial de jornalismo científico. Com o programa a distância, porém, é possível mobilizar colegas dispersos no Pará, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais ou na Paraíba para montar um grupo de discussão com leituras paralelas e criar capacitações para jornalistas. Sou muito favorável aos cursos a distancia em áreas especializadas. Se houvesse um bom programa, com boas leituras, o curso certamente atrairia muita gente que não tem condições de freqüentar classes numa universidade pelo custo alto ou porque tais cursos nem mesmo são oferecidos. Ainda que haja o programa de pós-graduação em jornalismo científico na Unicamp, são poucas vagas. O curso a distância democratizaria o acesso e atrairia pessoas que desejam ter mais informações sobre jornalismo científico, ciência em geral ou história da ciência. Se houvesse um programa on-line com bibliografias, audiovisuais e modelos de aulas, mais professores seriam estimulados a dar o curso. A ABJC tem uma proposta de um programa básico de divulgação científica para cursos a distância.

Como é a proposta da ABJC?
O programa ainda precisa ser discutido com outras pessoas, porque é necessário adapta-lo em função de cada localidade onde for oferecido. Haverá um roteiro básico comum, com temas gerais. Mas os temas específicos de cada cidade ou região vão variar segundo as demandas de cada local, para que o curso seja mais estimulante. Assim, alguns assuntos que vão ser abordados na Amazônia ou no Pantanal devem ser distintos daqueles que serão discutidos no Rio Grande do Sul ou em São Paulo, por exemplo. Também é preciso levantar sugestões de temas interessantes para a produção de vídeos, em função de cada localidade.

Na sua opinião, que papel o jornalista de ciência deve desempenhar na sociedade?
Sua função mais importante é contribuir para a democratização do conhecimento científico. Ele deve divulgar informações especializadas de maneira acessível aos cidadãos, para que eles possam participar de forma consciente do processo de tomada de decisão e dizer se preferem investir em nanotecnologia ou em arroz e feijão, por exemplo. O público precisa saber qual é a função da ciência e tecnologia num país como o nosso. Por isso, o jornalismo científico deve tornar mais visível o papel dos cientistas, dizer por que é importante para o país formar biólogos, físicos e químicos, e despertar vocações, ao mostrar essa área como um campo em que vale a pena seguir carreira. O jornalista precisa questionar por que é fundamental desenvolver ciência e não apenas comprá-la pronta. Deve esclarecer ainda como a ciência pode contribuir, e tem contribuído, para a humanidade. Precisa mostrar que os países ricos, que dominam o cenário internacional, são aqueles que investiram e investem em ciência e tecnologia e que, portanto, faz parte do desenvolvimento de um país, de sua cidadania e de sua independência possuir uma ciência e uma tecnologia fortes.

O jornalismo científico atual tem desempenhado essa função?
Com raras exceções, o jornalista científico tem sido um mero reprodutor de informações. Não tem contextualizado nem discutido o impacto do progresso técnico sobre a sociedade, assim como não tem cobrado das autoridades nem dos pesquisadores um maior envolvimento com a democratização do conhecimento. Ele tem sido burocrático, omisso e não tem cumprido sua função para a alfabetização científica. A mídia tem um papel importante de incluir o público no debate sobre ciência. As pessoas escutam falar sobre células-tronco e mudanças climáticas pela mídia, pois não estudaram isso na universidade nem no colégio. Essa mediação tem sido feita, às vezes, de forma irresponsável, sobretudo no que diz respeito à indústria da saúde, aos transgênicos e aos agrotóxicos. Alguns jornalistas usam como fontes pessoas que vendem estes produtos e não quem questiona o problema. O público está pouco informado e a culpa é da mídia – em particular, do jornalista científico, embora a responsabilidade não seja só desses profissionais. É preciso multiplicar os jornalistas de ciência e reforçar seu compromisso com a alfabetização científica e com a democratização do conhecimento.

Quais são os principais desafios nesse caminho?
Os desafios são consolidar o jornalismo científico e a divulgação científica como espaços regulares de debate e de formação nos cursos de comunicação; conscientizar os jornalistas para o compromisso com a alfabetização científica e com a democratização do conhecimento; e alertá-los para os grandes interesses que estão em jogo na produção e na divulgação da ciência e da tecnologia. A própria interação com os pesquisadores é um desafio, assim como a nossa formação nessa área, que pressupõe passar por vários campos complexos do saber.


Biografia

Embora viesse de uma família de profissionais da comunicação, Wilson da Costa Bueno optou pelo curso de matemática na Universidade de São Paulo (USP), no qual ingressou em 1967. Pouco tempo depois, no entanto, a Escola de Comunicação e Artes da USP lançou seu programa de jornalismo e Bueno resolveu se matricular e acumular as duas faculdades.

Ainda como aluno do 4º ano de comunicação, Bueno começou a trabalhar num jornal regional de Osasco, A Região, o que o obrigou a deixar o curso de matemática, que nunca chegou a concluir. A experiência profissional motivou sua dissertação de mestrado – Caracterização de um objeto-modelo conceitual para análise da dicotomia imprensa artesanal X imprensa industrial no Brasil – que abordava o papel dos jornais do interior no Brasil.

Entretanto, o gosto pela leitura científica, pelo método e pela filosofia da ciência permaneceu e, já formado, passou a lidar com jornalismo científico. Trabalhou em revistas especializadas, como Engenho e Tecnologia e Controle de Qualidade, enquanto também se dedicava à atividade acadêmica, como docente da USP desde 1972. Nessa instituição, defendeu sua tese de doutorado – Jornalismo Científico no Brasil: Os Compromissos de uma prática dependente – a primeira do país em jornalismo científico, e hoje ministra as disciplinas de jornalismo e saúde, jornalismo em agribusiness e meio ambiente, e jornalismo científico.

Já na Universidade Metodista de São Paulo, onde trabalha desde 1983, cuida da área de comunicação empresarial, que abrange os setores de comunicação de institutos de pesquisa. Paralelamente, Bueno edita o Portal do Jornalismo Científico, além do seu blog e de outros sites temáticos em questões rurais, de saúde, meio ambiente e agribusiness, que reúnem fontes, documentos, bibliografias e outras leituras. Todos estes veículos são mantidos por sua empresa, a Comtexto Comunicação e Pesquisa, que também oferece cursos de atualização profissional à distância, entre eles, o de jornalismo científico. Bueno também foi presidente, por duas vezes – 1988-1989 e 2007-2009 –, da Associação Brasileira de Jornalismo Científico.


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