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Ana Lucia Azevedo

“Consumir” ciência para exercer cidadania

Para muitos leitores de jornais, é difícil enxergar uma relação direta entre estudos científicos e o seu dia-a-dia. Além disso, nem sempre fica claro para o público o papel estratégico que a ciência pode desempenhar para o desenvolvimento do país. Nesse contexto, o jornalista científico tem uma função muito importante: “o de mostrar que defender a ciência, apreciá-la e consumi-la é um exercício de cidadania”. Essa é a visão de Ana Lucia Azevedo, ex-editora de ciência, meio ambiente, saúde e história do jornal O Globo.

Em entrevista concedida a Marina Ramalho, em dezembro de 2008, a jornalista fala do desafio diário de escrever sobre temas complexos de ciência para o público leigo, atividade que realiza há cerca de 20 anos, desde que integrou essa editoria no jornal carioca. Embora perceba uma melhora no atual jornalismo de ciência, Ana Lucia não vê com bons olhos o que ela chama de “superespecialização” do jornalista científico, que passa a adotar um olhar de cientista e acaba se distanciando da realidade do leitor.

A editora revela as coberturas jornalísticas que mais a marcaram em sua trajetória profissional e conta, ainda, quais são os temas preferidos dos leitores de ciência de O Globo. Para ela, estimular a produção de ciência no Brasil é fundamental, assim como mostrar ao público como o dinheiro do seu imposto está sendo investido em pesquisas. O principal obstáculo que encontra nessa missão é a precariedade da educação básica no país, um desafio para a ciência nacional, para o jornalismo científico e para o Brasil, como um todo.

Como sua trajetória profissional levou você ao jornalismo científico?
Sempre fui muito próxima à ciência. Estudei mecânica na escola técnica e cheguei a cursar engenharia mecânica na universidade, embora eu não tenha permanecido no curso nem um mês. Sempre fui um verdadeiro fracasso em desenho. Todos os alunos enxergavam coisas que eu não percebia nas aulas de perspectiva. Então, desisti da engenharia por falta absoluta de aptidão para desenhar. Sou graduada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense e entrei no jornal O Globo como trainee do Jornal de Bairros, em 1988, pouco antes de me formar. Mas sempre tive interesse pela editoria de ciência e meio ambiente, onde comecei a atuar em 1989. Fiz toda minha carreira no Globo: depois de trainee, fui repórter, redatora e editora.

Na época em que você começou a trabalhar com ciência no Globo, que outras iniciativas de jornalismo científico existiam?
Eram muito poucas. O Globo foi o primeiro jornal no Brasil a ter uma área de ciência na década de 1970. Não era propriamente uma editoria, tratava-se de um serviço comprado da UPI (United Press International) que funcionava como uma minisseção, chamada “Ciência e Vida”. A editoria herdou esse nome posteriormente e foi crescendo até o boom da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92. Paulo Motta, atualmente editor da seção “Rio”, editava ciência no Globo quando eu comecei na seção. Depois, o espaço encolheu um pouco, mas, de uns anos para cá, cresceu bastante. Acredito que hoje, talvez, seja a maior editoria de ciência entre os grandes jornais.

Durante sua trajetória profissional, alguma cobertura que você tenha feito marcou você de alguma forma?
A cobertura da Rio 92 me marcou, porque eu era muito nova – eu estava há apenas quatro anos no jornal e há três anos cobrindo ciência – e havia gente do mundo inteiro, entre chefes de Estado e grandes cientistas. Foi muito interessante. A cobertura de clonagem também foi impressionante, embora a maior parte dela tenha sido feita no exterior. O tema era muito chocante porque se tratava de algo que, até então, só era visto na ficção científica e que se tornou big science de uma hora para a outra. Foi um divisor de águas. Outras coberturas emblemáticas foram as de mudanças climáticas e a de células-tronco, porque aproximaram muito o público leitor.

Como você vê a área de jornalismo científico hoje, em comparação com a época em que você começou?
O campo ainda é muito pequeno, mas surgiram novas revistas dedicadas à área e hoje há mais gente cobrindo ciência nos grandes jornais. A Folha de São Paulo, por exemplo, tem uma editoria de ciência e O Estado de São Paulo tem a seção “Vida”, que abrange temas científicos. Um aspecto de que eu não gosto, porém, é que o jornalismo científico tem caminhado para uma superespecialização que o torna distante da realidade dos jornais e revistas. Se, por um lado, penso que a falta de especialização é ruim, vejo que a superespecialização também é negativa. Os repórteres, às vezes, esquecem que são jornalistas e não vejo isso com bons olhos. Acredito que o caminho ideal seja algo intermediário: o jornalista deve ter uma especialização em ciência, mas não pode perder o olhar do jornalista. Tenho percebido que, de uns anos para cá, alguns profissionais começam a ter um olhar de cientista, o que é ruim se ele trabalha num jornal. O compromisso do jornalista é com o leitor, ele não escreve para a comunidade científica e, sim, para o público leigo.

Quais foram as alterações introduzidas na última reformulação da editoria de ciência do Globo?
A última expansão da editoria aconteceu entre meados de 2006 e início de 2007. Houve uma reformulação geral do jornal e outras áreas também sofreram mudanças. Inicialmente, a editoria de “Ciência” passou a ter uma página diária, feita por apenas duas pessoas, eu e a Roberta Jansen. Além disso, passamos a ter uma página semanal inteiramente dedicada a história – O Globo foi o primeiro jornal a ter uma página só com esse tema –, um projeto antigo nosso que finalmente saiu em 2007. No meio desse mesmo ano, ganhamos uma página de “Saúde”, feita pelo Antônio Marinho, que passou a ser publicada junto com a de “Ciência” aos domingos, levando a editoria a ter duas páginas nesse dia da semana. Também temos mais uma pessoa na equipe agora, Carlos Albuquerque, que faz meio ambiente, tema que ganhou mais espaço dentro do jornal. Nossa equipe hoje tem quatro pessoas.

Que fatores influenciam essas variações no espaço dedicado à ciência no Globo?
O que foi decisivo para a última expansão da editoria de “Ciência” foi o próprio interesse manifestado pelo público. A direção do jornal percebeu que a seção de “Ciência” – tanto os temas de meio ambiente, como os de saúde – era muito bem vista pelos leitores. A seção de “História” também é muito querida do público. De forma geral, o espaço tem aumentado, embora no mês de dezembro, especificamente, tenha sido reduzido. Mas o jornal inteiro encolheu nessa época, não há relação alguma com a cobertura específica de ciência. Por isso, acredito que se trata de uma resposta aos leitores em geral e, especialmente, a uma demanda do público jovem.

Que tipo de comentários os leitores do jornal fazem sobre a área de ciência?
Há vários tipos de comentários. Os que chegam pelo Globo On-line não servem muito como parâmetro, porque costumam ser feitos sempre pelas mesmas pessoas, que falam sobre todos os temas. Já O Globo contrata empresas independentes para fazerem grandes pesquisas anuais com grupos de leitores e assinantes. Por meio dessas pesquisas, sabemos que os temas de ciência têm uma penetração muito boa entre o público jovem de forma geral. Em uma ocasião, tive interesse em saber o que pensava um determinado nicho de público – o de mulheres com nível universitário na faixa dos 30 aos 50 anos, profissionais liberais – que constitui o principal leitor do jornal hoje. Todas, sem exceção, disseram que gostavam da editoria, algumas delas guardavam recortes e liam sempre.

Quais são os temas de ciência de que os leitores mais gostam?
Há dois temas que são muito queridos pelo público. Um deles é a medicina de forma geral. As pessoas se interessam por saúde porque tem relação direta com a qualidade de vida delas e com seu dia-a-dia. O outro tema é o clima. Os leitores ficaram muito preocupados e mobilizados com a questão do aquecimento global. Esse tema tem boa leitura e gera retorno de público. Ainda assim, muitos outros assuntos despertam interesse, como arqueologia ou astronomia, por exemplo, embora não tenham o mesmo envolvimento direto com a vida das pessoas. Uma área, em específico, sobre a qual publicamos muito pouco são as engenharias, porque são muito técnicas. Sei que o investimento nas engenharias é muito importante e que as pesquisas nessas áreas precisam ser realizadas. Mas um jornal diário não é espaço apropriado para falar sobre um componente novo do tijolo ou sobre um parafuso inovador. As matérias precisam acrescentar algo ao leitor, precisam conter informações relevantes para o seu dia-a-dia.

Então um dos critérios de seleção das matérias é a proximidade do tema com o cotidiano do público...
Sim, mas nem sempre é assim. Há algum tempo publicamos a descoberta de uma ruína fabulosa em Roma. Isso não acrescenta nada na vida da “dona Maria”, mas é um assunto muito curioso. Certa vez, o geneticista inglês Andrew Simpson – que trabalhou muitos anos no projeto Genoma no Brasil – falou que investir em ciência, de forma geral, era muito importante, mesmo quando não percebíamos a utilidade direta da pesquisa, como no caso das letras clássicas, por exemplo. Esses estudos são interessantes porque têm relação com o desenvolvimento da civilização. Eu concordo. História e arqueologia tratam de civilização, por isso geram interesse. Nós tentamos contrabalançar. Também publicamos notícias de física, embora não sejam muito comuns. As matérias de física têm uma dificuldade a mais, porque tratam de uma área em que as pessoas precisam ter um mínimo de background para entender o que foi feito. E não podemos ter a ilusão de que o leitor brasileiro de nível superior sabe o que é um próton ou um elétron. Não sabe, já fizemos essa pesquisa. Assim, o jornalista precisa explicar coisas muito básicas e a matéria acaba ficando muito generalista. Imagine, então, a dificuldade de falarmos sobre um computador quântico! Não estamos nos dirigindo à comunidade científica, estamos falando para o público leigo, que vai ler alternadamente uma notícia de polícia, uma notícia de economia, uma de esportes e uma de ciência. Sempre falo aos pesquisadores que as pessoas não lêem aquilo que elas não entendem. Não se pode ter a ilusão de que uma bela matéria sobre taxonomia bioquímica, por exemplo, vai ser lida se o público não a entender. Matéria de ciência num jornal precisa ser entendida por qualquer pessoa. Temos sempre essa preocupação. E temos que levar em conta que o jornal tem a função de informar, não de educar. Acho que há uma dificuldade de se perceber isso.

A falta de informação prévia dos leitores é um obstáculo?
Infelizmente, os leitores já deveriam ter essas informações básicas, mas eles não têm. Não preciso sequer comentar a limitação do nosso sistema de ensino. Então, é um desafio diário debruçar-se sobre temas muito complexos e transformá-los numa linguagem do dia-a-dia. Também é por essa razão que a medicina acaba tendo tanta visibilidade. Porque as pessoas a conhecem minimamente. Elas não sabem o que é exatamente uma célula-tronco, mas sabem para que serve. Assim, é possível aproximar o tema. O mesmo ocorre com o projeto Genoma, que gera uma grande leitura, embora seja um tema hermético e muito complicado. A direção do jornal ficou muito impressionada porque a capa do jornal que divulgou a conclusão do seqüenciamento do genoma foi uma das mais lidas na história do Globo. O público pode não saber até hoje o que é de fato um gene, mas entende como aquilo pode impactar a ciência.

A maioria das matérias publicadas na seção de ciência do Globo se refere a pesquisas feitas em países desenvolvidos. O que determina a proporção de matérias sobre ciência nacional e sobre ciência de outros países?
O fator importante para definir se determinado tema vai ser publicado ou não é o seu valor de notícia. O jornal vive do novo, as pessoas procuram a novidade. Também é preciso levar em conta que a ciência produzida no Brasil não é tão vasta assim. Se considerarmos o tamanho da produtividade científica brasileira, notaremos que o número de matérias sobre pesquisa nacional publicadas no jornal é proporcionalmente maior do que o volume de ciência produzida no país. Há pessoas que têm preconceito de falar em “ciência-espetáculo”, mas essa característica é fundamental. Por exemplo, um transplante quase total de rosto – como ocorreu recentemente em Cleveland, nos EUA – é um assunto de óbvio interesse, todo mundo vai querer ler sobre isso. Então, estamos preocupados, acima de tudo, com o valor de notícia da pesquisa.

Independente do país onde a pesquisa foi realizada?
Independente do país. Mas, se é produzida no Brasil, evidentemente vai gerar um interesse ainda maior. Também entram outros fatores. Um deles é que a nossa equipe é muito pequena, então temos que lidar com nossa própria limitação. Os cientistas no Brasil ainda são muito fechados e, acaba sendo mais fácil entrevistar um pesquisador estrangeiro – até mesmo um vencedor do prêmio Nobel – do que falar com um cientista de uma instituição brasileira. Por termos uma equipe reduzida, procuramos transformar as matérias do Brasil em reportagens especiais, que ganham espaço maior no jornal e dispõem de mais tempo para apuração.

O mesmo raciocínio se aplica às matérias sobre pesquisas da América Latina? Elas são muito reduzidas no Globo.
Isso acontece porque a pesquisa produzida pela América Latina é ínfima. Se considerarmos os indicadores de produção científica – esses dados têm defeitos, mas é o que temos para trabalhar – e de publicação em revista científica indexada, vemos que o Brasil isoladamente é responsável por quase toda a produção de ciência no continente. Como não sou cientista, uso como critério de seleção o fato de determinada pesquisa ter sido publicada numa revista científica importante, porque significa que ela passou por revisão de pares – que têm condições de avaliar o que eu não tenho. Em geral, a pesquisa feita no restante da América Latina interessa pouquíssimo para nós, com exceção de aspectos da arqueologia.

Na sua opinião, qual é a importância de se divulgar as pesquisas nacionais?
É muito importante estimular a ciência no Brasil, por isso buscamos mostrar sempre que ciência é algo estratégico para o país e muito relevante para o dia-a-dia dos cidadãos. Muitas pessoas não conseguem conectar a ciência com a realidade. Não percebem que, se elas comem determinado feijão, é porque esse alimento tem um trabalho de pesquisa por trás, que envolve a Embrapa ou a Universidade Federal de Viçosa, por exemplo. Tento mostrar a aplicação da ciência no cotidiano do leitor. Certamente, haverá reclamações daqueles que fazem pesquisa básica. É verdade que nós não damos muita visibilidade para esse tipo de pesquisa, mas não significa que nós não a consideremos relevante. Sabemos que é muito importante, porém é mais simples mostrar ao leitor por que o dinheiro que ele paga em impostos está sendo investido nas ciências aplicadas, porque elas têm relação mais direta com o cotidiano. Procuramos evidenciar que é o cidadão, em última instância, quem financia a pesquisa no Brasil. Então, se fizermos uma matéria sobre satélite, vamos indicar por que esse aparato é importante para o país, as questões de soberania envolvidas, de estratégia, sua função de monitorar o clima e o sistema hidrelétrico, melhorar a produção da agroindústria etc.

 Nas notícias publicadas pelo jornal, há preocupação em atribuir um tom positivo à ciência?
Sim, buscamos mostrar a ciência como uma coisa importante, positiva, e como algo que não é difícil. Existe um preconceito de que ciência é complicada. Felizmente, acho que essa tendência é característica de uma geração anterior. Isso se reflete também entre os cientistas da geração de 50. Posso estar sendo injusta com algumas pessoas, mas, de forma geral, a geração mais jovem é muito mais aberta à ciência, são pessoas que cresceram com a internet e que não se assustam diante de temas mais complexos.

Mas o jornal também procura mostrar algum aspecto negativo da ciência?
Sim, tentamos ser bastante críticos. Na cobertura de transgênicos, por exemplo, acredito que temos conseguido manter uma cobertura equilibrada, nem contra nem a favor. Buscamos esclarecer que há riscos, mas que também existem benefícios. Não se pode generalizar. O feijão transgênico produzido pela Embrapa, por exemplo, é diferente da soja transgênica fabricada pela empresa de biotecnologia Monsanto. As pesquisas com células-tronco também não são isentas de riscos e buscamos mostrar isso. Elas podem ser uma promessa para o tratamento de muitas doenças, mas também podem gerar câncer. Esse tema é complicado, porque os jornais já foram acusados de divulgar essas pesquisas como se fossem a oitava maravilha do mundo. Entretanto, o que O Globo tentou mostrar – e creio que os outros grandes jornais adotaram a mesma linha –, era que a pesquisa com células-tronco precisava ser feita, pois existia a possibilidade de ter êxito. Não se sabia se os estudos teriam sucesso ou não, mas as pesquisas não podiam ser proibidas por causa de convicções religiosas. O que os jornais defenderam, acima de tudo, foi a não-interferência da Igreja no Estado, ou seja, a vitória do Estado laico sobre o dogmatismo religioso. A cobertura de células-tronco é bem marcante por essa razão e também foi um dos raros assuntos sobre os quais o jornal se manifestou em editorial, assim como fizeram o Estadão e a Folha de São Paulo.
 
No Globo, que critério determina se uma matéria será assinada ou não?
Nós assinamos matérias exclusivas. Se são temas publicados em revistas científicas, a notícia não é assinada mesmo que tenhamos entrevistado os autores do estudo ou outros pesquisadores. O mesmo ocorre com releases de sites especializados ou de agências de notícias, que, em realidade, quase não usamos. Em alguns casos, em coberturas desse tipo, é possível que o jornalista assine a matéria, mas só se ele realmente conseguiu um material diferenciado, se ele de fato for além do que foi divulgado a outros meios de comunicação. Mas, em geral, só assinamos o que é exclusivamente nosso.

Quais são as fontes de informação mais importantes no momento de buscar pautas?
Em muitos casos, nos pautamos por cientistas que já conhecemos, que sabemos que são pessoas credenciadas e cujo trabalho acompanhamos. Se me indicam o estudo de um cientista que eu não conheço, consulto seu currículo na plataforma Lattes, vejo onde publica, em que instituição atua. Não é uma estratégia perfeita, mas nos permite ter um mínimo de parâmetro para avaliar o trabalho de um pesquisador. Um jornal como O Globo tem muita credibilidade, seus leitores acreditam de fato no que lêem, então é preciso tomar muito cuidado para não publicar o trabalho de um charlatão. Temos a preocupação de checar as credenciais dos pesquisadores. Também consultamos muito as revistas científicas para nos pautarmos, mas sempre com a preocupação de publicar o que pode interessar ao leitor brasileiro. As revistas indexadas são importantes porque passam por um método de aferição por pares. A metodologia não é perfeita, sabemos que há política por trás das publicações e que os cientistas já foram enganados por estudos fraudulentos, como o do sul-coreano Hwang Woo-Suk, que publicou resultados forjados na Science. Mas é uma forma minimamente segura. Quase não usamos press-releases enviados por assessorias de imprensa de institutos de pesquisa. Faltam assessorias de comunicação eficientes nessas instituições que, de fato, divulguem a ciência que é feita nos institutos.

Como você verifica a precisão do que você edita ou escreve?
Antes de publicar determinado estudo, insisto muito em saber se o pesquisador já submeteu ou pretende submeter o trabalho à publicação em revistas científicas. Se o cientista responde que ainda não vai publicar, eu desconfio, porque pode significar que ele ainda não foi capaz de comprovar sua teoria. Mas também preciso usar o bom senso.

Você acha que a internet é uma fonte confiável?
De forma alguma. Qualquer pessoa pode publicar bobagens na internet, não há controle sobre autoria, por isso é muito difícil garantir a qualidade usando essa ferramenta como fonte. O próprio site do Globo recebe inúmeras tentativas de sabotagem por dia. Imagino que qualquer site importante pode ser alvo do mesmo tipo de ataque.

Como é a relação entre jornalistas e cientistas atualmente?
Vem melhorando. Os cientistas perceberam que os jornalistas – pelo menos aqueles que cobrem ciência com regularidade – não têm interesse algum em distorcer o trabalho dele e que a divulgação da ciência pressupõe uma parceria. É importante para o jornalista, que quer uma boa matéria, e para os cientistas, cujo estudo ganha visibilidade. Muitos deles chegam a mencionar as reportagens em seu currículo Lattes. Mas o mais importante do jornalismo científico é a possibilidade de dar uma satisfação para o público, quem financia, em última instância, o trabalho dos pesquisadores. Quase toda ciência feita no Brasil é patrocinada pelo Estado, cuja verba vem dos impostos pagos pelos cidadãos. Oferecer uma entrevista a um jornal é uma das formas – ainda que imperfeita e distante do ideal – do pesquisador devolver à sociedade aquilo em que ela própria investiu. Os cientistas costumam colaborar com jornalistas. Eu, particularmente, nunca tive problema com pesquisadores, mas, sim, com instituições.

Qual é o maior desafio do jornalista científico hoje em dia?
Cada vez mais, as pessoas dispõem de menos tempo para ler jornal, então nosso maior desafio é mostrar todos os dias, nesse curto espaço de tempo, que a ciência é algo relevante, necessário e ligado ao desenvolvimento econômico do país. Por outro lado, isso precisa ser feito sem erros de informação e usando uma linguagem fácil, simples, sem qualquer jargão científico, de forma que todos possam entender. Trata-se de um desafio diário.

Quais são as características de um bom jornalista científico?
O jornalista em geral precisa ser muito crítico, porque sempre haverá pessoas que querem enganá-lo para tirar proveito da visibilidade do jornal. É necessário escrever bem e ter conhecimentos gerais, o que também se aplica a qualquer profissional da área. O jornalista de ciência, especificamente, precisa saber que ele não é um cientista, portanto não escreve para a comunidade científica. Ele se dirige ao público leigo, que pode ser qualquer cidadão – um político, um empresário, uma dona de casa, um estudante, médico, professora... Isso é complicado. É muito mais fácil escrever para um cientista, porque você pode usar a linguagem dele. Mas a parte mais divertida do trabalho de um jornalista científico é justamente transformar a linguagem acadêmica numa linguagem acessível, com uma abertura interessante, que prenda a atenção do leitor.

Há quem defenda que para ser um bom jornalista científico é preciso ter uma especialização na área. Você acha importante ter uma formação acadêmica específica?
Eu sou contra o diploma de jornalismo. Na minha opinião, o ideal seria obter um diploma de curso superior e, posteriormente, fazer uma pós-graduação em jornalismo, que é o sistema vigente em alguns países, como os Estados Unidos. Entretanto, como isso não ocorre no Brasil, acho interessante que o repórter de ciência de um jornal diário tenha mestrado em alguma área científica, o que serviria para ele vivenciar o método da ciência, não para se tornar propriamente um cientista. Eu fiz mestrado em geografia, porque me parecia uma área multidisciplinar, através da qual eu poderia passar para o outro lado da bancada sem ter uma formação científica sólida. Não me passou pela cabeça fazer mestrado em engenharia, porque está muito distanciado do dia-a-dia. Não recomendo fazer mestrado em jornalismo científico, porque leio análises de pessoas que nunca trabalharam no meio e não sabem sequer como funciona uma redação. Não é possível ser especialista numa área em que você não atua.

Como você acha que um jornalista que trabalha com ciência pode se aperfeiçoar?
Existe uma boa dose de auto-didatismo, é preciso ler muito. Além dos livros de ciência, tenho que ler os de saúde e os de história. Além disso, existem muitos workshops e palestras interessantes acontecendo. É importante participar sempre que possível, embora nosso horário na redação não favoreça. Gostaria de participar muito mais.

No Globo, os jornalistas de ciência têm algum tipo de especialização formal?
Não. A nossa equipe atual é muito experiente, tem muitos anos de profissão, como o Antônio Marinho e a Roberta Jansen. Carlos Albuquerque, que tem 20 anos de jornalismo – embora esteja há apenas um ano e meio na editoria de “Ciência” – é biólogo.

A especialização é incentivada pelo jornal?
Ultimamente sim, mas não apenas em relação ao jornalismo científico. A especialização, de forma geral, é bem vista no jornal, mas é mais comum na editoria de economia, em que os jornalistas costumam fazer pós-graduação, depois MBA.
 
Uma crítica que se faz ao jornalismo científico, e à divulgação científica em geral, é que ele costuma ser uma forma de comunicação de mão única, do divulgador para o público, sem muita oportunidade de interação. Você concorda com isso?
Isso faz parte da natureza do jornal impresso. Nesse ano, O Globo empreendeu uma campanha de interatividade, feita basicamente via site, porque as pessoas podem se comunicar rapidamente por esse meio. Antigamente, os leitores só podiam se manifestar por cartas. Hoje, suas opiniões são publicadas ao longo das matérias no Globo On-line, num formato novo, separado por fios, assinado e com vinheta especial, como um box. Então, quem lê as frases identifica que se trata de opiniões de leitores. As pessoas mandam os comentários pelo site, que são selecionados e repassados a nós por um editor. Geralmente, são escolhidos os comentários mais bem escritos sobre uma mesma opinião, o ponto de vista da maioria dos leitores, que não precisa ter relação com a opinião do jornal. Isso ocorre com todas as editorias. Para o jornal impresso, é mais complicado. Existem os “Encontros O Globo”, com debates sobre vários temas, com convidados especiais e entrada franca. Dentro de ciência, já discutimos sobre clima, arqueologia e medicina, entre outros assuntos. São eventos abertos ao publico com a presença de cientistas. Por eles, podemos ter uma dimensão de como anda o interesse do público por certos temas.

Qual é o papel que o jornalista científico deve desempenhar na divulgação da ciência?
O jornalista de ciência tem o papel de difundir a ciência nacional, revelando o que está sendo feito de bom, e criticando o que há de ruim. Também deve mostrar a necessidade da ciência para a vida do leitor, ao informar como ela contribui para o seu dia-a-dia. O jornalista científico, assim, demonstra que aquele cidadão deve defender a ciência. O Brasil ainda tem que aprender muito sobre o que é a cidadania e direitos do cidadão. Nesse sentido, o jornalista científico tem uma função muito importante: o de mostrar que defender a ciência, apreciá-la e consumi-la é um exercício de cidadania.

Como você avalia a cobertura jornalística atual de ciência no Brasil?
É evidente que a qualidade das matérias precisa melhorar e que a seção dedicada à ciência deve ser ampliada. Dentro dos jornais ainda há a mentalidade de que política é o que rende manchete. Ainda temos que brigar por espaço. Mas acredito que essa visão tem melhorado na medida em que os comandos das redações estão se tornando mais jovens, mais modernos, mais antenados com seu tempo, livres do ranço da cobertura de política com “p” minúsculo – a política de congresso – e mais abertos a cobrir a política com “p” maiúsculo, que trata de temas mais próximos da sociedade. Outras áreas, não só a de ciência, tendem a ganhar mais espaço, como a cultura. O leitor tem direito de se informar sobre outros temas, não apenas sobre política e economia. O público pede diversificação, está cansado de más notícias. Existem informações ruins de ciência, como as de mudanças climáticas, mas o leitor também pode conhecer, por exemplo, a mulher que ganhou um transplante de rosto.

Na sua opinião, os noticiários de ciência deveriam incluir mais temas de políticas científicas?
Poderia haver um pouco mais de notícias sobre política científica, mas os pesquisadores precisariam se expor. Eles reclamam bastante, mas não querem dar depoimentos. O jornalista precisa de fontes, de pessoas que mostrem a cara e falem sobre os problemas. No Brasil, os cientistas são muito coorporativos. Eles dependem de financiamentos do governo para suas pesquisas. Por isso, no momento de criticar, ninguém quer se manifestar abertamente.

Como você vê o espaço ocupado hoje pela divulgação científica no Brasil?
Acredito que tem melhorado, embora ainda seja preciso ampliá-lo muito. Não é à toa que o jornal vem crescendo no Brasil e reduzindo nos Estados Unidos. Nós somos um país em desenvolvimento, temos um grande público analfabeto e, por isso, uma demanda reprimida imensa por informação, por parte de pessoas que estão tendo acesso à escolaridade. A divulgação científica – seja o museu, a revista, o documentário ou os programas de TV – tende a aumentar, porque há uma demanda crescente por ela. Os Estados Unidos, por exemplo, têm museus maravilhosos, fundações de pesquisa e divulgação muito eficientes, muitas revistas de ciência... Por isso, eles já chegaram perto do seu limite, enquanto nós ainda temos muito o que caminhar nesse sentido.

O que pode ser feito para aumentar a qualidade da divulgação científica em geral?
Essa questão passa pela melhora da educação como um todo no país, o que se reflete na qualidade da ciência e da divulgação científica, bem como no conhecimento prévio do público leitor. Seria muito fácil para o jornalista escrever numa linguagem complexa e citar determinados termos científicos sem a necessidade de explicá-los. Mas não adianta nada fazer isso se o leitor não vai entender. Seria um elitismo absurdo. A melhora da educação básica é um desafio do país, não apenas da ciência.


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