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Lacy Barca

Explorando a ciência além dos fatos

No ambiente científico, nada se descobre de um dia para o outro. É por isso que as notícias de ciência devem ir além do fato e mostrar um pouco do que há por dentro dos laboratórios. Quando lê matérias científicas na mídia brasileira, a jornalista Lacy Barca sente falta de visão crítica e de contextualização histórica e social. Para a profissional, que já coordenou a produção dos programas Globo Ciência e Globo Ecologia, o jornalista deixa de exercer um de seus principais papéis na sociedade – o de educador – quando não situa suas notícias num contexto mais amplo.

Nessa entrevista, concedida em fevereiro de 2009 a Marina Ramalho, Lacy Barca revela as maiores dificuldades de se criar programas de ciência na TV brasileira: “falta dinheiro e decisão editorial das emissoras”. “Para produzir programas de ciência de qualidade é preciso investir em pessoas, em equipamentos, em agilidade de produção e em boas idéias”, opina. Ela fala sobre sua ampla experiência em divulgação científica, sobretudo na televisão, e explica as diferentes lógicas de comercialização de programas científicos na TV aberta e na TV a cabo.

Fisgada pelo “vírus da ciência” desde cedo, a jornalista acha que os estudantes deveriam abrir os olhos para o campo do jornalismo científico, ainda desprezado. Para ela, quando trabalha com ciência, o profissional se encanta com a área e com as variadas possibilidades de temas e de fontes. Nesse bate-papo, Barca sustenta que o jornalismo científico não demanda especialização, embora ela própria tenha cursado doutorado. “Jornalista é jornalista. Somos especialistas em generalidades, mas sabemos contar boas histórias”, afirma.

Leia aqui a biografia de Lacy Barca

Quando despertou o seu interesse pela ciência?
Ainda criança. Eu queria ser médica e cheguei a estudar medicina por três anos. Mas abandonei o curso após assistir à morte de muitas crianças no Hospital de Base do Distrito Federal, onde fui voluntária da pediatria. Sempre gostei de escrever e foi fácil optar pelo jornalismo. Cursei comunicação na UniCEUB (Centro Universitário de Brasília), ao mesmo tempo em que trabalhava no Correio Braziliense, na reportagem geral. Depois, passei a editar uma revista infantil do jornal, que tinha como principais temas educação, ciência e sociedade, do ponto de vista das crianças. Era uma revista colaborativa, que publicava contribuições dos jovens leitores, como desenhos, histórias e reportagens sobre temas comunitários, charges e poemas.

Suas experiências seguintes continuaram no campo da ciência?
Assim que me formei, fui convidada para trabalhar na Assessoria de Comunicação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), no Rio de Janeiro. A Finep e a ciência me interessavam muito, por isso aceitei. Fizemos jornal interno e externo, divulgávamos projetos, fazíamos muitas matérias sobre os recursos oferecidos pela Finep às universidades, sobre os projetos apoiados e os avanços proporcionados por essas iniciativas, abordávamos a discussão da pesquisa básica e aplicada... Fiquei perdidamente apaixonada. Era maravilhoso conhecer os pesquisadores, participar das reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Eu achava o máximo, “peguei o vírus” da ciência.

Quando você ingressou na Finep, as matérias de ciência eram comuns nos meios de comunicação?
Não. O ano era 1980, a Ciência Hoje ainda não existia e não havia instrumentos periódicos de divulgação de ciência. Não tinha programas na TV e era raro sair matéria sobre ciência nos grandes jornais. A Finep tinha um jornalzinho dirigido a formadores de opinião, o Informe Finep – depois chamado de Inovação – que mostrava o que a instituição fazia. Em seguida, também criou uma pequena revista. Mas a tiragem desses veículos era muito limitada. Na TV, o primeiro programa jornalístico de ciência é de 1981, o Nossa Ciência, da TV Educativa, que teve 10 episódios. Em 1984, surgiu o Globo Ciência e eu fui para lá em 1987. Nesse momento, a Ciência Hoje já fazia um movimento pela divulgação científica. O jornal O Globo, que tinha a coluna “Ciência e Vida”, começou a expandir a área. O Jornal do Brasil também abriu uma editoria de ciência com Terezinha Costa, Edmilson Silva e Sergio Adeodato. As iniciativas começavam a proliferar.

Nessa época, havia assessorias de imprensa nos institutos de pesquisa e agências de fomento?
As iniciativas eram muito tímidas. Lembro que, em 1987, quando eu estava no Globo Ciência, fui convidada para fazer uma palestra em Santa Catarina para assessores de imprensa de universidades. Estavam presentes quase todas as assessorias das universidades públicas e algumas privadas, mas a equipe do Globo Ciência não conhecia ninguém. Só tínhamos notícia do pessoal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que já tinha um projeto de divulgação. As outras não tinham assessores que divulgassem ciência. Foi um choque na época.

Como foi sua mudança para o Globo Ciência?
José Renato Monteiro – diretor de educação da Globo Vídeo, que produzia o programa – foi à Finep em 1983 para conversarmos sobre pautas, porque estava montando um programa de televisão sobre ciência e tecnologia com verba do Fundo de Incentivo à Pesquisa Técnico-Científica (FIPEC), do Banco do Brasil. Eles tinham um contrato para produzir 30 programas, mas só tinham sete pautas. Nesse dia, ele saiu da Finep com mais de 50 pautas alinhavadas. Naquele momento, o Zé me convidou para trabalhar com ele. Eu disse que não podia. Não dava para me mudar para São Paulo. Estava grávida e ainda tinha trabalho a fazer na Finep. Mas o namoro com a equipe continuou e, quando a produção mudou para o Rio de Janeiro, eles me chamaram outra vez e aceitei. Eu não sabia nada de televisão, mas me disseram que eu aprenderia. O importante era que eu sabia de ciência e tecnologia e conhecia todo mundo da área. Foi assim que entrei na televisão e não saí mais.

Qual era sua função no programa?
Entrei para participar de um projeto especial de montagem de videotecas em universidades, usando o acervo do Globo Ciência. Comecei a aprender na prática a fazer televisão, a interferir na pauta e nos aspectos de produção. Então, virei coordenadora jornalística, uma função de chefia de redação, posto que ocupei por cinco anos. Havia quatro equipes de repórteres e quatro equipes de produtores. Até o dia 10 do mês, definíamos quatro ou cinco pautas de programas para o mês seguinte, porque precisávamos de uma semana para a pesquisa, uma para produção, uma para gravação e outra para a edição. Ou seja, um episódio levava um mês para ficar pronto e tínhamos quatro equipes em campo ao mesmo tempo, cada uma cuidando de um programa. Eu me responsabilizava por um deles, mas toda a parte de conteúdo, da pesquisa à edição final, também passavam por mim. Era uma boa oportunidade para aprender coisas legais, me relacionar com pessoas interessantes e discutir idéias inovadoras.

Como eram selecionados os temas dos programas?
Nossas pautas mostravam a ciência presente no dia-a-dia. Se queríamos fazer um programa sobre o café, apurávamos o que existia de científico no café. Também havia entrevistas e alguns programas de debate. Discutíamos, por exemplo, os benefícios ou desvantagens do programa Pro-Álcool. As pautas eram decididas a cada mês, abrangendo diversas áreas do conhecimento e buscando certo equilíbrio entre ciência aplicada, ciência básica, saúde, meio ambiente... Fizemos muitas pautas de agricultura, porque a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já estava bem estruturada, assim como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que rendeu temas para vários programas. Como eu conhecia muitos pesquisadores e projetos apoiados pela Finep, tinha muitas idéias. Por exemplo, eu sabia que o físico Moysés Nussenzveig, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trabalhava com arco-íris, então propus um programa sobre isso. Minha experiência anterior contava muito.

Vocês abordavam tanto a ciência produzida no Brasil quanto a ciência estrangeira?
Só tratávamos da ciência nacional. O primeiro programa foi sobre enxerto arterial no Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP). Mesmo os programas feitos no exterior tratavam da cooperação entre cientistas estrangeiros e brasileiros. Fazíamos um programa internacional a cada seis meses. O primeiro deles foi em Portugal, sobre cooperação científico-tecnológica Brasil-Portugal. Também fizemos dois programas na China, um deles foi sobre a missão espacial sino-brasileira – que já tratava da construção de satélites de sensoriamento remoto e seu lançamento através de foguetes chineses, um convênio entre o Inpe e a Academia Chinesa de Tecnologia Espacial. Fizemos ainda vários programas na Antártica, sobre as diferentes pesquisas de cientistas brasileiros na Estação Comandante Ferraz, no verão e no inverno, quando é muito arriscado chegar ao continente.

Vocês costumavam participar de encontros da comunidade científica?
Íamos às reuniões da SBPC para buscar temas, fontes e pessoas que pudessem nos pautar. Conheci a professora Eloisa Mano, do Instituto de Macromoléculas da UFRJ, na reunião da SBPC em Curitiba. Fui a uma palestra dela e fiquei encantada. Fizemos um lindo programa com ela sobre macromoléculas. Os jornais faziam o mesmo porque, de fato, não existiam outros veículos nem revistas nacionais. Não nos envergonhávamos de nos pautar uns aos outros. Lembro que após ler uma matéria do Sérgio Adeodato sobre plataformas de petróleo na Ciência Hoje,  fizemos um programa sobre exploração de petróleo com as mesmas fontes da Coppe (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia). Depois foram lançadas outras revistas, como a Superinteressante. Muitas pautas também surgiam no boca a boca, conversando com pessoas. Depois, desenvolvíamos o tema em campo.

Como era feita a pesquisa para os programas?
Como não existia internet, era bem difícil fazer pesquisa. Fizemos um episódio sobre supercondutividade, por exemplo, porque tinha ocorrido em São Carlos (SP) uma experiência com cerâmicas supercondutoras. Uma parte dessa pesquisa também veio da revista Superinteressante, pois pudemos localizar os cientistas no Brasil a partir de uma matéria publicada lá. As revistas científicas internacionais demoravam muito tempo para chegar ao Brasil, então tínhamos que conversar com as pessoas e com os cientistas para apurar os temas. Se saía uma notinha na New Scientist sobre qualquer assunto, buscávamos no Brasil quem era o mais renomado especialista naquela área. Íamos à Finep e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em busca de informações sobre os grupos de pesquisa.

Como era a relação da equipe do programa com os cientistas?
Muitas vezes, os pesquisadores não queriam nos atender. Hoje, o cientista já tem consciência do papel dele na divulgação científica e da importância de sensibilizar a opinião pública para a importância de seu trabalho e justificar o financiamento público para suas pesquisas. Embora ainda existam cientistas avessos à imprensa, já não são maioria. A situação era absolutamente inversa nos anos 80, o que exigia um trabalho sério de convencimento, porque muitos pesquisadores não falavam à imprensa. A televisão, sobretudo, representava um “monstro”. À medida, porém, que conversávamos com eles e íamos ao laboratório, o gelo ia sendo quebrado. Marcávamos a gravação e explicávamos o processo. Esse era um trabalho árduo da produção que não aparecia para o público, mas que era fundamental para as coisas darem certo.

Posteriormente, você também coordenou a produção do programa Globo Ecologia. As pautas também eram desenvolvidas a partir da ciência nacional?
Sim, a referência também era o Brasil. O Globo Ecologia teve alguns programas sobre temas internacionais, como parques nacionais americanos e africanos. Mas, no período em que eu coordenava a produção do programa, as pautas eram sempre em torno da qualidade de vida e menos voltadas à natureza. Fizemos séries grandes que abordavam a contribuição individual do cidadão para a qualidade de vida da sociedade. Mas também discutimos aquecimento global, aerossóis, a produção de geladeiras sem os clorofluorcarbonetos (CFCs) que agridem a camada de ozônio, desperdício de alimentos, de energia, de água, reciclagem etc.

Como o Globo Ciência e o Globo Ecologia eram recebidos pelo público?
Pelas cartas e e-mails dos telespectadores, sabemos que os dois programas sempre foram muito bem recebidos pelo público, embora a audiência fosse pequena por causa dos horários. O Globo Ciência começou a ser transmitido na TV Globo às 9h de sábado. Mas, quando a Xuxa estreou no canal, o Globo Ciência foi para as 7h30 [atualmente, está na faixa das 6h30]. Nunca houve ousadia por parte da TV Globo de colocar esse tipo de material no horário nobre, inclusive porque é considerado programa educativo, assim como o Globo Ecologia. Por isso são produzidos pela Fundação Roberto Marinho (FRM). A televisão é uma concessão pública que deve dedicar algumas horas da sua programação à educação. Pela Constituição, a TV tem que oferecer informação, educação e entretenimento, mas produz apenas informação e entretenimento – pouca ou nenhuma educação. Algumas exceções são a TV Brasil e a TV Globo que, dentre as emissoras nacionais, é a única que cumpre sua cota de educação, através da FRM, com os programas Telecurso, Globo Educação, Globo Ciência e Globo Ecologia.

Existem faixas específicas de horário na TV para a veiculação de programas educativos?
Teoricamente não. Mas no Brasil as emissoras optaram pelo horário da manhã. Tradicionalmente, os telecursos são veiculados de manhã bem cedo, para que as pessoas possam assistir antes de sair para trabalhar. Embora o Globo Ciência e o Globo Ecologia se enquadrem na categoria do infotainment (informação com entretenimento) ou edutainment (educação com entretenimento), eles são tratados na categoria de programas educativos. Atualmente, a Globo está fazendo uma nova experiência, o Globo Universidade: a TV Globo colocou um time de reportagem nas instituições de pesquisa. Tem audiência boa para o horário em que é exibido (7h15 de sábado): quatro pontos, enquanto Globo Ciência e Globo Ecologia alcançam um ou dois pontos.

Você também atuou no rádio. Como e quando foi essa experiência?
Saí do Globo Ciência em 1991, quando a Fundação Roberto Marinho passava por uma transição e decidiu que o programa deveria se tornar multitemático. A Videociência, dirigida pelo Sergio Brandão perdeu o contrato e a diretora paulista Denise Gomes assumiu o programa em parceria com Mônica Teixeira. Foi quando passei a me envolver mais com a área meio ambiente e comecei a fazer um programa diário de cinco minutos para a Rádio JB, chamado Nosso Planeta, sobre aspectos ambientais da cidade do Rio de Janeiro. Propus o programa pensando na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92, que estava próxima. O Nosso Planeta ficou no ar por quase um ano e foi responsável por toda a cobertura da Rádio JB sobre a Rio-92. Eu já não fazia mais o programa. Às vésperas da conferência, passei a coordenar a equipe de reportagem da TV Nacional de Brasília, emissora da Radiobrás, que vinha ao Rio cobrir o evento. Foi uma experiência muito dura, eu trabalhava entre 16 e 18 horas por dia. Mas foi incrível ver a área de meio ambiente – que quase não existia nos veículos de comunicação – explodir nos noticiários. O Jornal do Brasil, que na época disputava público com O Globo, lançou um suplemento tendo à frente Cristina Mikaelis.

Depois de um curto período, então, você retornou à televisão. Mais tarde foi para o Canal Futura. Como era trabalhar num canal de TV voltado à ciência e à educação?
Foi uma experiência muito legal, mas o Canal tinha coisas de louco. Colocá-lo no ar e pautar os programas eram atividades quase guerrilheiras, porque era trabalho demais para pouca gente. Na comemoração dos 40 anos de lançamento do satélite russo Sputinik, preparamos um dia inteiro de programação voltada para a conquista do espaço. Fizemos contato com uma nave Endeavour e chamamos ao estúdio o físico Henrique Lins de Barros para bater papo com os astronautas da nave, junto com o repórter Jorge Luis Calife, que também se dedicava ao tema. Exibimos o filme O homem do Sputinik e gravamos todas as “cabeças” [introdução] dos programas com apresentadores do Globo Ciência. Ficou muito bom, mas foi uma experiência traumática mudar toda a programação da emissora por somente um dia, antes mesmo que a programação normal estivesse consolidada. Pouco depois, saí do Futura para a gerência de ciência e ecologia da Fundação, onde passei a cuidar do Globo Ciência, do Globo Ecologia e de um projeto novo, o Tom da Mata.

Como era o Tom da Mata?
Além da produção de uma série de televisão, o Tom da Mata incluía livros, cadernos para professores e jogos para crianças. Trabalhamos com a obra do Tom Jobim e fizemos um cancioneiro da Mata Atlântica, com partituras simplificadas para as crianças tocarem na escola. Juntas, a educação ambiental e a musical dão um resultado interessante. Distribuímos kits para 800 escolas, em alguns estados brasileiros, depois nos reuníamos com os professores para realizar um processo de sensibilização com o material. Também estimulávamos a discussão sobre a participação do estudante no seu entorno, a responsabilidade individual em relação ao meio ambiente, acompanhada de atividades lúdicas e muita música. Naquele momento, em 1998, já havíamos feito o primeiro site interativo, para projetos colaborativos nos colégios. Mas quebramos a cara, porque não havia computador nas escolas. O Tom da Mata gerou o Tom do Pantanal e o Tom da Amazônia, e outros que seguem essa linha da educação ambiental com educação musical.

Você também atuou com responsabilidade social. Esse trabalho também tinha relação com divulgação científica?
Quando saí da Fundação, em 2000, fui para a TV Globo trabalhar com educação, na área social. Além do projeto de integração entre a emissora e as universidades, meu objetivo era pautar as campanhas sociais da Globo, organizando as demandas das instituições. Uma das experiências mais legais que tive foi fazer, junto com o neurocientista Roberto Lent – do Instituto Ciência Hoje e meu orientador no doutorado na época – uma campanha de divulgação científica, “Ciência vale a pena”.

Como foi a interação dos cientistas com a equipe da TV durante a criação da campanha “Ciência vale a pena”?
Foi muito legal, a idéia surgiu de um papo entre o Roberto Lent e eu, no ano de lançamento da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, em 2004. A Ciência Hoje já havia anunciado gratuitamente na TV Globo anos antes. Agendei uma reunião do Roberto e do Ildeu de Castro Moreira [do Departamento de Popularização e Difusão da Ciência e Tecnologia, do MCT], com o chefe da Central Globo de Comunicação, o Luis Erlanger, que adorou a idéia. O Roberto batizou a campanha de “Ciência vale a pena” e rapidamente escreveu uns 15 temas que poderíamos abordar. Recebi o material e achei maravilhoso. A TV tinha condições de oferecer o espaço de veiculação e conceber a campanha pela equipe de publicidade. O Instituto Ciência Hoje arcou com os custos da produção. Trabalhamos nos roteiros a muitas mãos. Todos opinaram e deu tudo certo. O período de filmagem foi maravilhoso, correu tudo bem e criamos oito filmes. Naquele período, foi a campanha mais veiculada pela TV Globo. Havia espaço para veiculação e a campanha era muito consistente e inovadora.

Havia alguma vinheta preferida pelo público?
Um dos filmes de maior sucesso era o do surfista oceanógrafo, porque surpreendia os telespectadores ao mostrar que o cientista podia ser jovem. A vinheta mexia com o imaginário popular, que costuma descrever o cientista como alguém mais velho. A campanha foi premiada pelo Festival de Cinema e Vídeo Científico do Mercosul, em 2006.
 
Ao longo da sua trajetória profissional, qual cobertura mais marcou você?
Foi maravilhoso fazer o episódio “Niède Guidon e as origens do homem americano”, para o Globo Ciência. Foi incrível conhecer os 400 sítios arqueológicos em São Raimundo Nonato, no Piauí, vivenciar a discussão internacional sobre as origens do homem americano e conhecer a sinceridade e a força da professora Niède Guidon. Essa foi a primeira vez que uma equipe de televisão foi àquele pedaço do Piauí, era muito difícil chegar lá. Saímos do Rio num avião rumo a Terezina e lá embarcamos num aviãozinho, carregando 200 quilos de equipamentos. Viajamos mais duas horas até São Raimundo Nonato e lá encontramos o embrião do Museu do Homem Americano. Em certo momento, estávamos numa gruta, quando, de repente, saíram várias jararacas debaixo de um plástico que cobria ossadas de animais pré-históricos. Também foi uma grande emoção ver um paredão de mais de 200 metros com pinturas rupestres. Esse espaço, que hoje é patrimônio da humanidade, desafia um debate internacional: a teoria, ainda em vigor, sobre a origem do homem no continente americano diz que ele entrou na América pelo norte. Mas as pesquisas do grupo da professora Niède Guidon encontrou fósseis de 50 mil anos no Brasil, enquanto os registros mais antigos nos EUA têm 12 mil.

Em sua tese de doutorado, você comenta que a ciência tem espaço maior nos canais a cabo do que na TV aberta brasileira. Por que isso acontece?
O espaço da ciência na TV aberta do Brasil é decrescente. Já na TV paga, há canais inteiros dedicados à ciência e ao meio ambiente, que têm sucesso mundial: Discovery, Discovery Health, National Geographic... Eles participam do mercado internacional de televisão, onde as empresas compram os melhores programas feitos por produtoras independentes do mundo todo. Uma produtora de Boston (EUA) chamada WDBH, por exemplo, faz uma série de televisão há cerca de três anos chamada Nova – com episódios semanais de uma hora de duração sobre ciência e tecnologia – que tem mercado garantido nas emissoras pagas. Essa empresa faz parceria com a Discovery e tem seu programa vendido na bolsa internacional. Todo ano ocorre o Mercado Internacional de Produção em Cannes, em dois eventos conhecidos como MipCom e MipTV, dos quais participam as emissoras e produtores independentes de todo o mundo. Nesses mercados, as vendas dos produtos para televisão são feitas por pacotes de produtos prontos, ou por meio do investimento em projetos ou em programas ainda em diferentes etapas do processo de produção.

A lógica de comercialização e produção de programas na TV paga é diferente da TV aberta?
Sim. Por exemplo, a BBC produz programas científicos há 50 anos. Tem um Departamento de História Natural que se dá ao luxo de acompanhar um urso polar por cinco anos para mostrar um ano de vida desse animal. Mas a série de quatro episódios vai ser vendida para as televisões do mundo inteiro. É uma lógica de comercialização diferente da TV aberta no Brasil. Aqui, quase sempre se produz apenas para o público interno. Além disso, as emissoras nacionais querem produzir todo  o conteúdo que veiculam, uma tradição inaugurada pela TV Globo. Mas as produtoras independentes brasileiras já acharam o mercado internacional. Existe uma iniciativa da ABPITV (Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão) intitulada Brazilian TV Producers, que leva as produtoras independentes e seus produtos audiovisuais para pré-venda e pós-venda nesses eventos. Ano passado, na Feira Nacional de Produtos, em São Paulo, a National Geographic promoveu um pitching (quando produtores apresentam idéias de programas e concorrem para obter financiamento) para selecionar um projeto que ganharia 20 mil dólares só para o desenvolvimento técnico e criativo. Não era para filmar ou editar. Os recursos são usados para preparar o projeto para captação junto a investidores, geralmente anunciantes do próprio canal. Uma série de três programas pode, facilmente, custar 500 mil dólares para se produzida.. Mas sustenta a audiência do canal.

Quais são as maiores dificuldades de se fazer programas de ciência na TV aberta?
Dinheiro e decisão editorial. Para produzir programas de ciência de qualidade na TV é preciso investir em pessoas, em equipamentos, em agilidade de produção e em boas idéias. Se a idéia é fazer uma série sobre células-tronco, não adianta colocar um repórter para entrevistar a geneticista Mayana Zatz porque, com esse formato, só se faz um episódio, falta atrativo para desdobrá-lo numa série. É preciso ir a campo, conhecer pessoas que pesquisam o assunto, abordar os diversos aspectos da questão. É preciso contar uma boa história. Em televisão, os equipamentos e profissionais são caros. O invetimento feito na produção influi na qualidade do produto.  Os exemplos mais bem sucedidos no exterior são de emissoras muito bem estruturadas. Quanto mais se produz, melhor se produz. Se produzíssemos mais, faríamos com maior qualidade técnica e editorial. Se considerarmos o programa Nossa Ciência, de 1981, temos 28 anos de divulgação científica na TV brasileira, enquanto que em outros países, como a Inglaterra, a divulgação científica é trabalhada desde a criação da televisão. É um atraso histórico, igual ao que ocorreu com os meios impressos, já que também na Inglaterra se faz divulgação científica impressa há mais de 100 anos. A Associação Americana de Ciência e sua revista têm mais de um século, ao passo que temos pouco mais de duas décadas de Ciência Hoje.

Como o Globo Ciência e o Globo Ecologia se sustentam no ar até hoje?
A TV Globo tem uma postura política de investir em educação, através da Fundação Roberto Marinho. A missão da fundação é educacional, o que inclui a ciência e o meio ambiente. Os dois programas já estiveram ameaçados várias vezes, mas foram absorvidos pelo Canal Futura (da FRM) e, assim, têm verba garantida todo ano. Além disso, o tema ecologia e desenvolvimento sustentável é muito caro aos acionistas da Rede Globo e da FRM. É ótimo que esses programas se mantenham no ar, mas eles têm qualidade e poderiam sustentar um horário de maior audiência e impacto social.

Você já trabalhou em vários meios de comunicação além da TV. Segundo sua experiência, qual é o potencial de cada um dos meios de comunicação – TV, rádio, jornal, internet – para o jornalismo e a divulgação científica?
Não vejo os meios de comunicação como meios excludentes. Vivemos numa sociedade crossmedia. Se você tem uma boa idéia, faz um programa de rádio, de televisão, uma matéria de jornal, uma matéria de revista, um livro, um DVD, um site... E mais: pode-se juntar todo esse material e aplicá-lo na escola. É uma questão de adaptação de linguagem e adequação de formato. Aposto na crossmedia, não optaria por nenhum veículo. No entanto, o mais impactante é o audiovisual – não me refiro necessariamente à televisão aberta, pode ser o DVD que colocamos no computador. Com o audiovisual, é possível compartilhar uma experiência e envolver o público, construir conhecimento. Com a TV digital, o audiovisual vai se tornar cada vez mais interativo e quando houver canal de retorno para os telespectadores, a experiência de ver tv será muito diferente..

O que o jornalista científico deve levar em conta para fazer um bom trabalho?
Ele tem que se comportar como cientista, no sentido de correr atrás de conhecimento antes de apurar a informação. O jornalista científico precisa conhecer um pouco do assunto sobre o qual vai escrever, não importa o veículo. Tem que fazer seu dever de casa, para estar preparado quando se confrontar com a fonte. Ter cultura geral e curiosidade também é muito importante.

Como você avalia a cobertura de ciência hoje em dia nos diferentes meios?
Sinto falta de visão crítica e de contextualização histórica e social nas matérias que leio. Vemos notícias sobre o teste de uma vacina contra a malária como se ela tivesse sido feita agora, embora saibamos que há gente trabalhando duro nisso há pelo menos 30 anos. Além disso, há muitos temas vindos do exterior, que fazem sucesso primeiro lá fora para depois repercutir no Brasil, com exceção de textos mais opinativos, como os do Marcelo Leite e do Marcelo Gleiser, ambos da Folha de São Paulo. Se sai algo numa revista científica internacional, sai matéria no Brasil. Há pouca pesquisa de campo para conhecer os laboratórios brasileiros. É óbvio que existem as limitações dos veículos, embora a internet facilite muito o trabalho. Na televisão, praticamente não há programas especializados. Mas o telejornalismo, especificamente, tem tentado abordar a ciência, com certos avanços. As matérias do Jornal Nacional sobre ciência e tecnologia estão cada vez melhores e mais bem construídas. A Tv Brasil também tem feito boas matérias.

Muitas pessoas acham que não é preciso ter uma formação específica para ser jornalista científico. Outros defendem que os jornalistas tenham alguma formação acadêmica nessa área. Você fez doutorado. O que você pensa sobre essa discussão?
O doutorado não me ajudou na atividade de divulgação de ciência. No entanto, me serviu para refletir sobre uma determinada iniciativa de divulgação científica que existia. Quando se fala em formação específica, penso numa pessoa que estudou física e vai escrever sobre ciência. Obviamente, ela vai ter um embasamento maior do que o meu para escrever sobre qualquer aspecto da física ou da matemática. Mas não necessariamente terá um texto melhor. Jornalista é jornalista, somos especialistas em generalidades. A especialização se busca no dia-a-dia. Se eu não me preparar para entrevistar o Roberto Lent, não saberei fazer perguntas. Mas isso não significa que preciso me tornar uma neurocientista para escrever sobre neurociência. Se fosse assim, não poderíamos escrever sobre assunto algum. O repórter de economia se especializa em economia, mas o repórter de ciência e tecnologia não pode se especializar em todas as áreas da ciência. Basta ter noção e exercitar o senso crítico. Mas acho muito bacana aprender sobre a contextualização da divulgação científica no Brasil e acho interessante que o estudante abra os olhos para o jornalismo científico, área ainda desprezada. As pessoas não saem da universidade e dizem “vou fazer divulgação científica”. Mas quando aparece uma oportunidade de fazer divulgação científica, a pessoa se encanta, porque, uma das coisas mais chatas do jornalismo é fazer sempre a mesma coisa e ter sempre as mesmas fontes. A ciência tem como vantagem a variedade de assuntos com os quais mexer. Mas dá mais trabalho, tem que estudar mais.
 
Para você, qual é o papel do jornalista científico e do divulgador científico na sociedade?
É o mesmo papel do jornalista em geral. Falo do ponto de vista do jornalista porque não sou cientista nem tenho essa pretensão. Não podemos esquecer do papel social do jornalismo, que está ligado à informação e à educação das novas gerações. O jornalista não pode abrir mão do seu papel de educador. Na medida em que ele deixa de contextualizar o assunto, deixa de exercer o seu papel social. No jornalismo ligado ao conhecimento, isso é ainda mais importante, porque a matéria de ciência é pouco factual, ela vai além, e acho que deve ser assim mesmo, porque nada se descobre de um dia para o outro, não existe isso na ciência.

Qual é o maior desafio para exercer esse papel?
São muitos. O maior deles é comunicar claramente, em qualquer meio. A comunicação não é o que você diz, mas o que as pessoas entendem. Posso dizer muita coisa, mas, se ninguém entende, não adianta. O grande desafio é tornar-se compreensível sem fazer simplificações grosseiras. Isso é mais difícil no jornalismo científico, porque a tendência é usar o jargão ou procurar uma analogia que pode ser banalizadora e se desviar completamente do que você quer dizer. Na televisão é mais fácil porque podemos mostrar de verdade como as coisas visíveis estão sendo feitas. Para as invisíveis, podemos recorrer à computação gráfica. No texto isso é muito mais complicado.

Biografia

Quando criança, Lacy Varella Barca de Andrade sonhava ser médica. Mais tarde, acabaria deixando o curso de medicina para estudar jornalismo no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), mas o campo da ciência continuou a interessá-la. Depois de formada, em 1980, foi trabalhar na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no Rio de Janeiro, onde coordenou a área de assessoria de imprensa. Deixou seu posto em 1987, quando foi convidada para integrar a equipe do programa de TV Globo Ciência, um dos pioneiros em divulgação científica no Brasil.

Lacy aprendeu a fazer TV na prática e não parou mais. Na Fundação Roberto Marinho e, particularmente, no Canal Futura, integrou equipes de outras atrações que tinham a ciência e o meio ambiente como fio condutor, como o Globo Ecologia e o Tom da Mata. Na Rede Globo, coordenou projetos para aproximar a emissora do mundo universitário e participou ainda da criação da premiada campanha de TV “A ciência vale a pena”, em 2004, junto com o Instituto Ciência Hoje.

Entre um projeto e outro, Lacy atuou num programa da Rádio JB, sobre meio ambiente – anterior à Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92 –, quando as questões ambientais ainda não eram comuns nos noticiários. A jornalista também cursou doutorado e é autora da tese “Iguarias na Hora do Jantar: O espaço da ciência no telejornalismo diário”, defendida em 2004 no Programa de Pós-graduação em Educação, Gestão e Difusão em Ciências, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Hoje, Lacy é gerente de documentação e pesquisa da TV Brasil. Embora não esteja diretamente ligada à divulgação científica, ela encontra meios de seguir atuando na área, participando de projetos e pesquisas no campo. Atualmente, ela integra o corpo docente do curso de especialização em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde, ministrado no Museu da Vida (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz).


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