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Dietrich Schiel

Colocando a mão na massa

Despertar a curiosidade de crianças e jovens para os fenômenos científicos é um desafio que a escola não tem como enfrentar sozinha, acredita Dietrich Schiel. Foi pensando em uma maneira de contribuir para o ensino fundamental e médio de ciências que o físico, com um grupo de docentes de universidades de São Carlos (SP), teve a idéia de criar um centro de ciência para atender a comunidade escolar local. Daí nasceu, em 1980, em uma sala cedida pela Universidade de São Paulo (USP), o embrião do Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC) – chamado inicialmente de Coordenadoria de Divulgação Científica e Cultural. Institucionalmente ligado aos institutos de química e de física da USP, o projeto se consolidou como um espaço importante de produção de material experimental para uso em sala de aula e de oferta de atividades não-formais voltadas ao ensino de ciência.

Nesta entrevista, Schiel, que dirigiu o CDCC até dezembro de 2003, conta sua história, desde os primeiros anos, quando tinha apenas um funcionário e alguns monitores voluntários, até a formação de uma grande equipe, composta hoje por cerca de 30 pessoas.

Ele fala ainda sobre os primeiros kits de ciência produzidos na Experimentoteca, projeto pioneiro do CDCC que se espalhou por todo o país e abrange hoje 52 kits experimentais, mapas, vídeos e jogos. Depoimento concedido a Luisa Massarani e Fabio Gouveia, em novembro de 2002.

Leia aqui a biografia de Dietrich Schiel

Quando e como surgiu seu interesse pela área de educação e divulgação científica?
Quando terminei meu doutorado na Alemanha, em 1970. Essa opção, de certa forma, fez parte da agitação política da década de 1960. Voltei ao Brasil sentindo uma necessidade ética de contribuir para a educação do meu país. Estava disposto a trabalhar com o ensino de física. Mas como não tenho formação pedagógica, tive muita dificuldade em achar um caminho. Tentei várias coisas, alguns trabalhos em universidades. Mas a oportunidade só surgiu em 1979. Um grupo de docentes das universidades em São Carlos e da rede de ensino local resolveu dar um passo na integração universidade-escola. Foi então que promovemos, em novembro de 1979, o I Simpósio de Integração Universidade-Escolas de 1º e 2º graus.

Qual foi a importância desse simpósio para o seu ingresso na atividade de divulgação científica?
Na época, havia várias propostas nacionais de intervenção da universidade em sala de aula. Um dos objetivos do simpósio era justamente fazer uma nova proposta de integração. Isso coincidiu com a desativação de um prédio da Universidade de São Paulo (USP). Nesse prédio, construído em 1902 pela sociedade Dante Alighieri, ocorreram as primeiras atividades da USP em São Carlos, em 1953. Os pesquisadores estavam saindo do prédio e indo para o campus. Com isso, ganhamos uma sala, o germe do CDCC.

Como foi a primeira fase do CDCC?
Nossa idéia inicial na época era montar uma associação – hoje seria uma organização não-governamental –, mas surgiu a proposta de institucionalizar o projeto dentro da universidade. Dessa forma, criou-se uma estrutura administrativa e uma coordenadoria, que deram início a algumas atividades. O trabalho começou de maneira totalmente experimental, sem uma proposta muito clara. Nesse início, praticamente só tinha eu, um funcionário e alguns monitores voluntários. Nos primeiros três anos, vivíamos das migalhas da direção do instituto. Dávamos minicursos nas escolas, ajudávamos alunos... Os trabalhos avançaram muito com o surgimento do PADCT [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico], em 1984, um projeto do Banco Mundial para promover o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Nosso grupo estava discutindo uma idéia que surgiu no Simpósio de Integração Universidade-Escolas de 1º e 2º graus, de desenvolver uma série de kits experimentais de ciência. Apresentamos, então, uma proposta em cima disso e nosso projeto foi contemplado. Foi, então, que iniciamos a Experimentoteca.

Em sua avaliação, esse primeiro edital do PADCT teve um impacto importante para a educação científica no Brasil?
Ele iniciou toda uma discussão no país. Muitos grupos que trabalhavam em educação para a ciência de repente encontraram apoio. Pela primeira vez, na história que conheço, lançou-se um edital de produção de novidades para a sala de aula. Antes, quando fazíamos projeto de educação para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a gente disfarçava, fingia que era pesquisa, mas a gente queria ação. Com o PADCT era a primeira vez que um projeto privilegiava a ação. Surgiram diversos grupos, muitos deles ativos até hoje.

O que se desenvolveu no CDCC nesse primeiro projeto contemplado pelo PADCT?
Partimos da convicção de que a escola pública precisa de auxílio externo. A idéia era fazer alguma coisa para ajudá-la. Pensamos então na criação da Experimentoteca. Montamos um projeto de quatro anos. Trabalhamos com quatro séries (5ª, 6ª, 7ª e 8ª), uma em cada ano. Isso nos dava prestígio dentro da universidade. Aos poucos, conseguimos aumentar o quadro de funcionários. Começamos com um funcionário e chegamos a cerca de 30. A essência do mérito do trabalho do CDCC cabe a esses funcionários.

Como foi o processo de criação e construção do primeiro kit?
Começamos pela 5ª série. Tínhamos dois professores bolsistas do PADCT, além da nossa equipe e monitores. O kit era um material improvisado, colocado em uma caixa de sapato. Ali havia experimentos de biologia, física e química. Colocávamos, como fazemos até hoje, mais exemplares de cada experimento para os alunos terem acesso. O kit era levado para ser testado em sala de aula. Na etapa seguinte, fazíamos a avaliação com auxílio dos professores que realizaram os testes com os alunos.

A idéia era atingir a comunidade local?
Na primeira fase da Experimentoteca, atingíamos a comunidade de São Carlos. Mas logo surgiu uma demanda grande em outras cidades. Professores das cidades vizinhas e grupos nacionais que trabalhavam na renovação da educação pediam que déssemos oficinas e palestras. Então tentamos montar um projeto nacional de disseminação. Isso foi em 1990. A gente conseguiu apoio do governo, do novo PADCT, mas o dinheiro não saía. Conseguimos finalmente apoio da Vitae, que nos possibilitou desenvolver um projeto nacional, atingindo mais de 20 cidades. Aproveitamos para mudar o design das caixas e dos componentes, que estava um tanto amador. Um amigo meu, Christian Folz, engenheiro da Faber Castell especialista em embalagem, ajudou a criar o novo design. O projeto foi se ampliando e hoje são 52 kits experimentais, mapas, vídeos e jogos.

Quando o CDCC conseguiu apoio da Vitae?
A Vitae surgiu em 1985, com três linhas de fomento: educação, cultura e promoção social. Eles começaram financiando projetos na área de cultura. Quando conversaram comigo, estavam iniciando a linha de educação. Na época, os recursos permitiram a implantação da Experimentoteca em 20 cidades do país, do Pará a Santa Catarina. Foi um sucesso! Apareceu nos jornais. Acho que na época foi o projeto financiado pela Vitae que alcançou a maior projeção. Parece que esse sucesso acabou influenciando a atual prioridade da Vitae em financiar centros e museus de ciência.

Como foram escolhidos os locais de implantação da Experimentoteca?
Escolhemos centros que já haviam nos convidado para dar oficinas. Ficamos em contato com esses espaços. Quando recebemos os recursos da Vitae, mandamos os nossos kits para eles. Usamos também um critério pessoal. Mandamos para alguns lugares onde achávamos que havia uma liderança legal para desenvolver o projeto.

O projeto da Experimentoteca tem retorno financeiro?
Teve um tempo em que a gente vendia bem, mas percebemos que estávamos extrapolando os limites da proposta da universidade. Ela não deve produzir industrialmente. No início, produzíamos apenas para responder a uma pequena demanda. Depois que o negócio cresceu, enfrentamos até mal pagador. E não é nosso papel ficar cobrando. A indústria sim tem esse perfil. Resolvemos então patentear a Experimentoteca, seguindo o procedimento legal. Fizemos uma licitação pública e uma empresa de Curitiba, Brinkmobil, ganhou. Para nossa infeliz surpresa, vendiam muito menos que nós no início. Mas agora estão começando a vender bem.

Durante as mais de duas décadas de atividade no CDCC, vocês contaram com o apoio da universidade?
No começo, havia um pouco de desprezo pelo que fazíamos, mas atualmente não. Não percebemos o tipo de descaso de que muitos outros grupos que trabalham no ramo se queixam. Posso dizer que sempre tivemos muito apoio. Da universidade e também das agências de fomento. Toda vez que precisamos de dinheiro, acabamos conseguindo, de uma forma ou outra. É claro que sempre temos que nos adequar às condições impostas por quem oferece apoio, mas geralmente conseguimos. Via de regra, quando não conseguimos fazer algo, foi mais por incompetência nossa do que por falta de recursos. As duas unidades às quais somos ligados institucionalmente, o Instituto de Física e o de Química, estão entre os institutos de pesquisa mais produtivos da USP. Pelo modo como nos tratam, acho que vêem nosso trabalho com bons olhos. Acho isso importante.

Além da Experimentoteca, o que o espaço oferece aos visitantes?
Ao longo dos anos, expandimos de acordo com as necessidades surgidas. Temos hoje bastante espaço para orientar alunos e ministrar cursos, de cerca de quinze horas, sobre vários assuntos. Organizamos também cursos para capacitação de professores. Além disso, procuramos montar projetos – na maioria com nossos antigos parceiros da disseminação da Experimentoteca – que tenham realmente impacto nacional. Estamos com um projeto francês muito legal de ensino de ciência, que se chama La main à la pâte [Mão na Massa].

Como é esse projeto?
É uma cooperação entre a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Academia Francesa de Ciências. Trata-se de um projeto que se encaixa nas propostas inspiradas pelo construtivismo e que remontam à escola nova de Anísio Teixeira, de 1932. A idéia iniciou com o prêmio Nobel de Física Leon Lederman, nos EUA, no começo da década de 1990. Em 1995, o também prêmio Nobel francês Georges Charpak descobriu o projeto e bolou uma versão francesa. O projeto original norte-americano é dividido em módulos prontos. Na França, decidiu-se estimular os professores a criarem módulos. Isso transformou incrivelmente a proposta. Outra peculiaridade é que, na França, a participação é voluntária. Nos baseamos na experiência francesa.

Além de ter estimulado iniciativas em educação para ciência no Brasil, o CDCC inspirou alguns grupos na América Latina, como, por exemplo, na Argentina. Como foi essa experiência de expansão do projeto?
Sempre que possível, procuramos estimular outros grupos no Brasil e em outros países. Desenvolvemos um projeto de cooperação regional com a Universidade de Córdoba, no norte da Argentina, que contou com financiamento da Fundação Ford e coordenação de Sérgio Mascarenhas. Até 2003, quando a fundação encerrou o financiamento ao projeto, desenvolvemos diversas atividades em parceria. Publicamos, inclusive, um livro bilíngüe (português e espanhol), O Estudo de Bacias Hidrográficas - uma Estratégia para Educação Ambiental [Rima Editora, 2002. São Carlos, SP], com propostas concretas de atividades e pesquisa nas duas cidades.

Que outros projetos desenvolveu na USP de São Carlos?
Montamos dois pequenos museus, um de física e ecologia e um pequeno observatório. Conseguimos, em 1985, do Instituto de Astronomia, uma luneta desativada, usada para pesquisa nas décadas de 1940 e 1950. Mas não tínhamos como montá-la, porque era um trambolho. Aí, na passagem do Cometa Halley, em 1986, conseguimos dinheiro com a indústria local para montarmos um pequeno observatório e usarmos a luneta. O observatório, hoje ampliado, tem ainda a luneta, imensa e muito bonita, que impressiona muito. Esses instrumentos são os melhores para observação dos planetas, pois distorcem menos a imagem da superfície desses astros que os telescópios.

Como você vê atualmente as atividades de divulgação e educação científica?
Entre as disciplinas escolares, as matérias que envolvem ciência são as que mais encontram dificuldades em transmitir conteúdo na forma tradicional de aula expositiva. A aula de ciência sempre precisou de complemento, de construção de material instrumental, do apoio da divulgação científica. Só assim pode-se despertar a curiosidade dos alunos para os fenômenos mais modernos. É essencial e fundamental que isso seja feito.

Que sugestão você daria a outros centros e museus ligados à área de ciência?
Faço esse discurso em todos os centros que visito, todos o elogiam, mas ninguém faz: é a apologia da biblioteca. No CDCC, temos uma biblioteca que atende cerca de 40 mil visitantes por ano, a maioria alunos. Está sempre cheia e é atraente para os adolescentes, como um shopping, para crítica de alguns e alegria minha. Dispõe de cerca de 17 mil livros – didáticos, paradidáticos e de divulgação científica – e 800 fitas de videocassete e, ainda, oferece orientação ao aluno em trabalhos científicos. Temos quatro bibliotecárias e monitores plantonistas pagos pela USP e voluntários. Se chega uma criança com uma dúvida, a própria bibliotecária pode ajudá-la. Mas, se chega um adolescente com uma dúvida de química, então a bibliotecária chama um monitor de química para ajudá-lo. O estudante de São Carlos tem esse apoio, principalmente o aluno da rede pública.

Por que você acha que os outros centros de ciência, embora elogiem a proposta de biblioteca, não "compram" essa idéia?
Minha explicação é a seguinte: essa é uma proposta brasileira. Se você for lá fora, os centros de ciência não têm bibliotecas com a conotação da nossa. Então os planejadores, que se baseiam nestas experiências, acham que não deve ser importante.

Ao longo de suas atividades no CDCC, conseguiu conciliar seu trabalho de pesquisa ou precisou dedicar-se exclusivamente ao projeto?
Hoje sou um pesquisador em educação e em ensino de ciências vinculado ao Departamento de Física e Ciência dos Materiais do Instituto de Física da USP de São Carlos. Pesquiso especificamente novas tecnologias para educação à distância.

Biografia

Dietrich Schiel nasceu em 1940, na cidade de Dresden, Alemanha. Após se formar em engenharia na Universidade de São Paulo (USP), em 1964, voltou a seu país de origem para estudar na Universidade Stuttgart, onde concluiu doutorado em física, em 1970. No mesmo ano, retornou ao Brasil com uma idéia fixa: contribuir para a educação científica brasileira.

Em 1979, organizou, junto a docentes de universidades de São Carlos e da rede pública de ensino, o I Simpósio de Integração Universidade-Escolas de 1º e 2º graus. No ano seguinte, como resultado das discussões realizadas no simpósio, foi criada a Coordenadoria de Divulgação Científica e Cultural (CDCC), atualmente Centro de Divulgação Científica e Cultural.

Foi no CDCC, entre 1980 e 2003 (quando deixou a diretoria do centro), que Dietrich Schiel testou a maioria de seus experimentos em divulgação científica. Hoje, vinculado ao Departamento de Física e Ciência dos Materiais do Instituto de Física de São Carlos da USP, Schiel é pesquisador da área de educação, especificamente de novas tecnologias para educação à distância e de ensino de ciências. Coordena, no CDCC, o projeto Mão na Massa e, na Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), um projeto de aprendizado eletrônico através da Internet II [Nota do editor: Schiel se envolveu nesse projeto depois de conceder esta entrevista].


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