Publicada em: 01/01/2001 às 11:11
Depoimentos


Ulisses Capozzoli
Núcleo de Estudos da Divulgação Científica

Jornalismo científico e alienação do mundo

O jornalismo científico, embora tenha ganho maior espaço nas últimas décadas, ainda sofre com a falta de filtro crítico e de reflexão intelectual por parte dos profissionais que trabalham na área. Essa é a visão do jornalista científico Ulisses Capozzoli. Para ele, a ciência é divulgada pela imprensa de forma “sumária, pobre e mecanicista”.

Capozzoli defende que, para trabalhar na área, o jornalista deve ter formação cultural mais ampla, indo desde as humanidades às exatas, passando pela biologia e pela literatura.
Nessa entrevista, concedida à Carla Almeida, em junho de 2004, ele fala sobre como a sua formação em psicanálise e em história da ciência foi importante para desempenhar melhor o papel de divulgador de ciência e sobre a necessidade de os jornalistas da área se libertarem do viés mecanicista da profissão e se voltarem para um jornalismo mais interpretativo e contextualizado historicamente.

Conta, ainda, suas aventuras pelo território brasileiro e por terras desconhecidas.

Leia aqui a biografia de Ulisses Capozzoli

Sua formação é bem diversificada. Você estudou jornalismo, economia, psicanálise, astronomia e história da ciência. O que veio antes: o envolvimento com a ciência ou com o jornalismo?
Há pouco, me dei conta que meu envolvimento com a ciência é uma história antiga. Fui dar uma palestra no colégio em que estudei, no sul de Minas Gerais, e ex-colegas me presentearam com meus documentos escolares. Mexendo nesses documentos, vi que minhas melhores notas eram em ciências. Tinha esquecido disso. Já o meu envolvimento com a astronomia está muito ligado a minha adolescência em Minas. Acampava muito com meus amigos na Serra da Mantiqueira. Já no caminho, íamos observando o céu. Era comum ficar horas olhando para o céu. Quando fui fazer vestibular, foi muito complicado escolher uma área porque tinha interesse em muitas áreas. Fazer jornalismo foi uma maneira de tentar resolver esse problema. Quando estudava jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), pensava em fazer jornalismo econômico. Fiz vestibular e entrei para a faculdade de economia. Estudei durante três anos e larguei.

Você chegou a escrever sobre economia na Folha de São Paulo... O que marcou sua saída do jornalismo econômico e entrada no jornalismo científico?
Escrevia sobre economia na Folha, em 1983, quando os europeus lançaram o Satélite Astronômico Infravermelho, o IRAS. Um colega meu, físico, escreveu um artigo sobre a formação de uma nuvem densa de gás e poeira que pesquisadores descobriram em torno da estrela Vega quando foram calibrar o satélite. O artigo estava equivocado. Nessa época, eu já fazia observações astronômicas, me interessava e me envolvia com astronomia amadora há bastante tempo. Cheguei até mesmo a iniciar um curso de extensão universitária no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Resolvi fazer um artigo contestando o ponto de vista do meu colega, argumentando que seu enfoque tinha um certo reducionismo. As descobertas de planetas extra-solares atualmente – em torno de 120 casos – são a evidência de que meu ponto de vista fazia sentido. Meus colegas gostaram dessa abordagem e abriram espaço para escrever sobre astronomia e ciência como um todo.

Havia, na época, outro jornalista que cobria ciência na Folha?
Quando comecei a escrever sobre ciência, a única pessoa que fazia isso era José Reis, que tinha uma coluna de ciência na Folha de São Paulo. Meus colegas da editoria de economia diziam que eu estava maluco, que jornalismo de ciência não existia. De fato, ainda não era nada institucionalizado. Sou um dos veteranos na retomada do jornalismo científico como a gente faz hoje.

Dois anos depois de entrar para o jornalismo científico, você já estava na Antártida fazendo reportagem. Como foi essa aventura?
O Brasil, que tinha ficado de fora do Ano Geofísico Internacional (1957/1958) e do Tratado da Antártica (1961), queria ter direito a voto quando o tratado fosse reaberto em 1991. Para isso, tinha que ter pesquisa na Antártida. O governo fez toda uma agitação na época, com uma visão geopolítica típica dos militares. Compraram um navio desativado que serviu a expedições polares francesas, o Barão de Teffé (ex-Thala Dan), para levar pesquisadores para lá. Na primeira ida, em 1983, o navio levou alguns jornalistas de agências oficiais. Em seguida, a Folha recebeu um convite da USP, dona do navio oceanográfico Prof. W. Besnard, para mandar um jornalista para a Antártida na segunda expedição, em 1985. Fui eu, já que era o único repórter na Folha que escrevia sobre ciência. Foi uma experiência fantástica. Fiquei dois meses enviando relatos por rádio à Folha. Era um trabalho artesanal, improvisadíssimo. Essa viagem certamente foi um marco no meu envolvimento com a divulgação de ciência.

A viagem serviu de inspiração para escrever o livro Antártida, a última terra?
Antes de ir para a Antártida, eu já era fascinado pelos relatos de todos aqueles aventureiros: Ernest Shackleton, Roald Amundsen, Robert Scott... Isso fez parte da minha infância. A viagem me levou a reencontrar esses heróis. Viajei junto com Rubens Junqueira Vilela, o primeiro brasileiro a colocar os pés no Pólo, em 1961. Hoje somos grandes amigos. Ele me contou inúmeras histórias... Com todas as informações que eu tinha juntado antes de ir e com tudo que coletei durante e após a viagem, decidi escrever esse livro. Nele, conto toda a história da Antártida, desde as navegações portuguesas que a costearam. Chama-se Antártida, a última terra porque o continente Antártico foi o último a ser descoberto.

Alguma outra reportagem marcou sua trajetória no jornalismo científico?
O Brasil não mandou exploradores para Antártida durante o Ano Geofísico Internacional, em 1957/58, porque estava envolvido com a chamada “Marcha para Oeste”. Na época, já estava em pleno vigor a expedição Roncador Xingu, liderada pelos irmãos Villas Bôas. Fui atrás dessa história, mais ou menos em 1995, 1996, quando estava no Estadão. Um pouco depois, em 1997, fiz uma viagem ao rio Orinoco, na parte venezuelana da Amazônia. Fui atrás de uma índia Yanomami chamada Yarima. Ela tinha se casado com um norte-americano e morava nos Estados Unidos. Quando foi à Venezuela gravar um documentário para a National Geographic, fugiu para a floresta. Pensavam que ela tinha morrido até que um grupo de pesquisadores a encontrou acidentalmente. Tentei encontrá-la, mas a região era inacessível. Houve uma epidemia na aldeia e ninguém sabia onde ela estava. Na tentativa de encontrá-la, achei Helena Valero, brasileira que foi raptada, em 1932, por um grupo Yanomami. Ela foi fonte primária para uma série de estudos antropológicos posteriores sobre os Yanomamis. Foi uma experiência fantástica, mas apenas uma das muitas que vivenciei especialmente na Amazônia, trabalhando com povos indígenas.

Não é comum ver hoje nos jornais diários uma abertura para grandes reportagens, principalmente na área de ciências. O Estado de São Paulo dedicava, naquela época, mais espaço para se aprofundar em determinados assuntos?
Quando o doutor Julio Mesquita Neto ainda era vivo e dirigia a redação do jornal, abrimos espaço no Caderno 2 de domingo para assuntos científicos. Isso foi em 1994. Nessa época, o Estadão era um lugar muito agradável de se trabalhar. Doutor Julio permitia que fizéssemos trabalhos mais ousados. Além disso, ele gostava muito de ciência. Fui repórter durante um tempo, depois editei o caderno. Fiz uma reportagem especial sobre as Ilhas Galápagos e escrevi outro suplemento sobre “O Céu do Hemisfério Sul”, que ganhou o prêmio Esso. O caderno teve resultado excelente. Mas depois que doutor Julio morreu, as coisas mudaram e ele deixou de existir nessa formatação.

O que representou para você esse trabalho de apuração mais profunda e mais trabalhosa? Foi importante na sua carreira?
Enquanto repórter de ciência, sempre procurei mergulhar mais fundo em cada caso que trabalhava. Em vez de me restringir a uma entrevista, sempre gostei de escavar mais fundo. Uma entrevista, quase sempre, apenas complementa ou atualiza um acontecimento. Claro que há entrevistas densas, profundas e ricas. Mas, em geral, ao menos em ciência, não é assim. O envolvimento com astronomia, a formação em psicanálise, que estudei três anos na Biblioteca Freudiana de São Paulo, o mestrado e doutorado em história da ciência acho que refletem o interesse que sempre tive em uma dimensão epistemológica.

Você considera que essa formação ampla foi essencial no seu desempenho como jornalista de ciência?  
Para fazer qualquer trabalho intelectual, é preciso uma boa formação. Na divulgação científica, essa característica é muito importante. É difícil escrever sobre ciência sem ter contato, ou até uma base mais sólida, com algumas áreas. A psicanálise, por exemplo, é um delas, por muitas razões. As pessoas, quase sempre, falam do inconsciente como se fosse uma dimensão qualquer. Para mim, a descoberta do inconsciente foi um processo muito estimulante e, de certa forma, libertador de um confinamento formal. Quando percebi do que se tratava, ajudou-me muito a me libertar de uma visão do conhecimento, de interpretação da realidade, que é muito freqüente no jornalismo, sumário e pobre, mecanicista, ao alcance da mão. Veja o que escreveu Aldous Huxley, em A Ilha, a respeito da mentalidade jornalística. Para não irmos muito longe, é preciso não esquecer que, quase sempre, as redações são espaços de grande sofrimento psíquicos. Chefes autoritários e limitados, mentalidade estreita, corrida contra o tempo... É uma receita infalível para a alienação. Mas nem todo mundo segue esse caminho. Conheci grandes jornalistas, gente de boa formação, gente afetiva e generosa.

Você defende que o jornalista de ciência precisa de uma formação mais específica para exercer a profissão?
Me preocupo muito com a questão da formação do jornalista de ciência. Fui participar de uma banca de doutorado e a bióloga que estava defendendo a tese fez uma série de citações, de jornalistas científicos, completamente absurdas. Uma delas defendia que para exercer o jornalismo científico não é necessária uma formação específica, que escrever sobre ciência é como escrever sobre qualquer assunto. Isso é um absurdo! É claro que precisa de especialização, em jornalismo científico ou em qualquer outra área. Uma especialização que não seja alienada. A bióloga disse, ainda, que a tarefa do jornalista é perguntar. A questão é: perguntar o quê, para quem, como? As respostas que se seguem são estágios para novas perguntas. Se você não reflete sobre o que pergunta, certamente aceitará qualquer coisa como resposta.

O que o jornalista científico tem que fazer para fugir dessa lógica mecanicista?
Os jornalistas que forem trabalhar com divulgação de ciência devem ter em mente que o jornalismo científico é, antes de tudo, jornalismo interpretativo, contextualização histórica de acontecimentos. Para fazer essa contextualização, é preciso um outro tipo de jornalista. Poderia retomar, por exemplo, uma resposta de Freud à pergunta: “Para que serve a psicanálise?”. Ele dizia que servia para diminuir o sofrimento humano. Os trabalhadores intelectuais e os jornalistas que escrevem sobre ciência deviam trabalhar tendo isso em mente. Para fornecer uma inteligibilidade possível do que podemos chamar da máquina do mundo, da qual o homem é o intérprete, precisamos nos equipar com uma formação cultural muito mais ampla, que passa pelas humanidades, pelas exatas, pela matemática, química, física, biologia, literatura...

Como avalia sua atuação como presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), de 2000 a 2003?
Encontrei a ABJC praticamente desativada. A proposta da nossa chapa era clara quanto às nossas preocupações. A questão epistemológica estava presente e a necessidade de sensibilizar a sociedade para as perspectivas da ciência também. Uma das principais coisas que fizemos foi organizar, em São José dos Campos, a III Conferência Mundial de Jornalistas Científicos. Durante uma semana, discutimos questões atuais ligadas ao jornalismo científico. Trouxemos gente da Índia, do Japão, dos Estados Unidos, de vários países da Europa... Era para ter vindo um representante da África, mas ele desapareceu no meio do caminho. Foi possível fazer uma boa reflexão sobre a área. Deu para perceber, entre outras coisas, que avançamos bastante no Brasil em termos de divulgação e jornalismo científicos. Isso significa que temos uma massa crítica bastante razoável, o que não deve nos colocar em uma posição de conformismo.

Na sua avaliação, a que se deve esse avanço do jornalismo científico?
A ciência brasileira teve crescimento relevante a partir de fatos como a fundação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, e com a formalização da pós-graduação, na década de 1960. Esse crescimento na produção científica levou a uma série de iniciativas. Uma delas foi a criação da revista Ciência Hoje, em 1982. As pessoas diziam que ciência não vendia e a Ciência Hoje provou o contrário. Quando a ciência chegou a esse estágio, começou naturalmente a sensibilizar mais a sociedade para as perspectivas científicas. O processo de redemocratização também provocou, de certa forma, o reaparecimento do jornalismo científico. A economia acabou se diluindo nas páginas de jornais e outros assuntos foram ganhando maior interesse, como a ciência. As pessoas procuram inteligibilidade possível para acontecimentos do dia-a-dia. Por que algumas estrelas são vermelhas, outras azuis, outras brancas ou amarelas como o nosso Sol? Isso tem alguma relação com as cores do arco-íris ou com a chama do fogão a gás onde preparamos as refeições? Por que a noite é escura? O Universo é finito ou infinito? O que é o tempo? Ele pode ser revertido? Por que as nuvens são brancas e, às vezes, ficam escuras?

Esse crescimento foi acompanhado por um aumento de qualidade da divulgação científica no Brasil?
Há um lado preocupante desse crescimento. Há vários cursos lato e até stricto sensu de jornalismo científico que são muito ruins. Apesar de termos uma massa crítica boa, temos, por outro lado, a reprodução desses cursos ruins. As pessoas estão fazendo uma graduação fraca, depois fazem um mestrado fraco, um doutorado fraco, e assim reproduzem fracamente essas aulas. Pouca crítica tem sido feita nesse sentido. Somos coniventes com essa farsa que, em muitos casos, beneficia pessoas e grupos. Esses grupos, em certas circunstâncias, se vêem como herdeiros legítimos de processos odiosos. A simulação é um deles e, no ensino, é especialmente prejudicial. As pessoas acreditam que estão aprendendo coisas relevantes (embora quase sempre percebam a farsa) e, no final, com freqüência se trata de idéias limitadas, sem nenhum poder de criação.

Além dos meios mais tradicionais de divulgação científica, discute-se hoje o uso de ferramentas alternativas, como o teatro, a música e a ficção científica, por exemplo. No seu caso, que sempre foi um leitor assíduo de ficção científica, você acha que ler esses livros ajudou a despertar seu interesse por ciência? 
Ainda hoje, algumas pessoas vêem a literatura na produção de ciência como um exotismo. Fred Hoyle, que morreu em 2001, tem um livro chamado Nuvem Negra, um clássico da ficção científica. Quando acabou o espaço da ciência para tratar daqueles assuntos, de vida fora da Terra, ele simplesmente passou para ficção científica. Ela é um recurso para se dar seqüência às investigações e especulações e para se expressar metaforicamente. Isso aconteceu muitas vezes na ciência e certamente acontecerá sempre. Boa parte das pessoas, incluindo acadêmicos, argumenta que essas vias não configuram a realidade. Digo que não configura a idéia de realidade que eles têm na cabeça. A realidade é muito mais vasta e desconcertante do que sonha a “vã filosofia”, para tomar a expressão do príncipe Hamlet referindo-se à ciência. A ficção científica deve ser vista como uma história possível do futuro. Veja o caso do romance de Phillip K. Dick, que deu origem a Blade Runner. O filme, de Ridley Scott, foi escolhido há duas semanas como o melhor na área de ficção científica. Antecipa todos os problemas que estamos começando a ver, agora, com o desafio das clonagens. Com freqüência, você ouve pessoas dizerem que são favoráveis (muito raro, na verdade) ou contrários a clonagens humanas. O problema, no entanto, não é dessa natureza simples – a favor ou contra. A história nunca perguntou às autoridades científicas ou religiosas sobre como deveria expressar-se.

Além de escrever na Folha e no Estado de São Paulo, você trabalhou, na década de 1980, no CNPq e no Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe), duas instituições importantes e ligadas ao governo. Como foi essa experiência?
O CNPq e o Inpe são lugares muito complicados. O CNPq, por ser uma burocracia infernal. Trabalhei lá como editor da Revista Brasileira de Tecnologia. No Inpe, fui assessor de comunicação do Marco Antônio Raupp, diretor na época. Foi quando se criou a Assessoria de Comunicação do instituto. Também era complicado, entre outras coisas, pela disputa que sempre existiu com os militares, que tinham a pretensão de se apossar do Inpe, até a criação da Agência Espacial Brasileira (AEB). Foi uma experiência interessante passar por esses dois lugares. Foi gratificante para conhecer a porta dos fundos desses institutos.

Foi você quem tropicalizou a Scientific American. Como foi a experiência e quais foram os maiores desafios de fazer a edição brasileira dessa renomada publicação norte-americana?
Sou leitor da Scientific American há muitos anos. Na década de 1990, a revista foi comprada por um grupo alemão – o mesmo grupo proprietário da Nature – e começou um projeto de expansão. Hoje, são mais de 20 edições internacionais. No Brasil, ela é editada pela Duetto, empresa responsável por outras publicações segmentadas, em parceria com a Ediouro, que edita livros de bolso e palavras-cruzadas. A visão que a Duetto tem de ciência é, no mínimo, complicada. Julgam que editar a revista Cabelos – que trata disto mesmo – é a mesma coisa que editar uma revista de ciência. Na verdade, são variantes do que poderíamos chamar de analfabetismo científico na imprensa nacional. Como fui o primeiro editor da edição brasileira da revista, defini o nome das seções, procurei os articulistas, enfim, dei uma cara à revista. Fiquei lá dois anos, até que começou a ficar penoso. Venho de uma família anarquista e aprendi a cultivar algumas referências. Não suporto certo autoritarismo, simplorismos e outras coisas desagradáveis. Outro problema é que era muito pouca gente. Minha assistente e eu trabalhávamos com a corda muito esticada. Os artigos de pesquisadores brasileiros chegavam, às vezes, com muitos problemas. O pessoal não sabe escrever. Tínhamos que resolver questões em um nível tal que não sobrava tempo para pensar. E acho que não é possível executar qualquer trabalho sem pensar. Um dia, decidi ir embora. Não briguei com pessoas, não ofendi, nem me irritei. Apenas compreendi que a praia estava mudada e teria que buscar outro espaço onde me sentisse melhor. Foi o que fiz.

Você mencionou a dificuldade do pesquisador em achar uma linguagem e uma maneira adequada para falar ao público não-especializado. Você vê hoje uma preocupação maior da comunidade científica em levar o resultado de suas pesquisas à sociedade?
Vejo sim. Acho que houve uma mudança de mentalidade. Em 1983, quando comecei, havia uma postura muito arrogante da comunidade acadêmica em relação ao jornalismo científico. Tive, nos primeiros anos, algumas dificuldades. Dificuldades que seriam naturais. Depois, acho que por meu próprio envolvimento e dedicação, comecei a ter um apoio. Não posso me queixar. Na verdade, penso que é o retorno do cuidado e do empenho que sempre tive. Ninguém está livre da entropia, mas devemos ser responsáveis e cultivar um certo perfeccionismo. É muito produtivo e traz um certo prazer. Na Scientific Ameircan, por exemplo, mexia nos textos e mandava para as pessoas lerem, o que evita conflitos desnecessários. Tomando esses cuidados, o jornalista consegue fazer uma aliança entre produtores e consumidores de conhecimento, para colocar a questão em termos mais simétricos. E isso é de fundamental importância para a sociedade.

Os jornalistas confundem, às vezes, o conhecimento específico dos pesquisadores e sua capacidade de discernimento em questões éticas envolvidas diretamente com suas pesquisas, alimentando a crença de que o cientista é sempre o dono da verdade. Como você avalia essa postura?
Isso é reflexo do analfabetismo científico dos jornalistas, que gostam e têm necessidade de perguntas e respostas pontuais. Afinal, precisam entregar a matéria até o fim da tarde. Esse é um trabalho alienado. Por isso, digo que precisamos de um outro tipo de jornalismo, outro tipo de jornalista. Produzir essa comunidade jornalística é um enorme desafio que temos pela frente.

Hoje, fala-se muito no papel social que o cientista deve desempenhar. E o jornalista?
A partilha do conhecimento é a partilha mais generosa que há. Se o jornalista acredita que a ciência pode mudar para melhor a sorte de um país com o potencial que tem o Brasil, não deve pensar exclusivamente no emprego. Deve pensar o envolvimento com a ciência como um projeto de vida. Isso passa por uma revisão profunda de valores. Passa por uma formação intelectual mais ampla, menos provinciana. Quando se trabalha com divulgação da ciência, é preciso levar em conta todas as suas dimensões: a lúdica a social, a existencial... Daí a exigência de uma formação mais ampla. Meu interesse epistemológico e a tentativa de vivenciar todas as experiências que vivi foi uma forma de colocar a ciência para uma discussão social. Tento fazer isso até hoje escrevendo para o Observatório da Imprensa, por exemplo.

O Observatório da Imprensa é um espaço de crítica à imprensa. Quais são, na sua opinião, as faltas mais graves da imprensa atualmente?
A ciência começou no Brasil tardiamente, acidentalmente e, logo em seguida, fomos inundados pelo positivismo, que é uma visão de certa forma simplificada do mundo. A imprensa brasileira é um reflexo desse positivismo. No Observatório da Imprensa, escolho assuntos variados e tento sempre dar ao tema um enfoque do ponto de vista da ciência. Procuro uma inteligibilidade possível para levar as pessoas a novas descobertas, à reinterpretação de fatos. Nossa função, como jornalistas científicos, é oferecer essa inteligibilidade possível, para diminuir o sofrimento de alguma forma, para trazer esperança e para as pessoas perceberem que o fato de existirmos, de o Universo existir, é uma coisa fantástica. Você poderia ter o nada, mas tem o Universo, e o Universo com leis. Isso não é nada banal.

O jornalismo científico evoluiu no sentido de criar um espaço para inserir a cultura científica na sociedade brasileira?
Acho difícil dizer que sim ou que não. Temos um potencial promissor que depende de uma série de fatores para se desenvolver; depende muito da construção de uma certa massa crítica. Estamos avançando nesse sentido, mas a formação acadêmica nessa área ainda é de qualidade a desejar. Nós, que estamos fazendo esse tipo de reflexão, temos a obrigação moral, profissional, ética e estética no sentido de fazer todo o esforço possível para viabilizar essa possibilidade. Pela cidadania, pela possibilidade de humanização que a ciência traz, não a ciência positivista, mas a ciência que conta uma história do homem e do Universo.

Que desafios é preciso enfrentar para caminharmos nessa direção?
O primeiro desafio é desatar o nó que envolve uma falsa oposição entre ciência e cultura. Mesmo na comunidade acadêmica você encontra quem pense que ciência é uma coisa e cultura é outra. Isso é fruto da nossa tradição recente, do nosso substrato mental. Isso não ocorre só no Brasil, mas é muito forte aqui. É preciso ter uma visão mais ampla, mais ousada, para compreender que ciência integra a cultura humana, da qual não pode ser separada. Esse é um legado da Grécia Antiga, mas também do Egito, do mundo árabe e de tudo o mais que fermentou essa reflexão, dos primeiros humanos que olharam para o céu. Para tratar a questão com produtividade, é preciso enxergar a ciência como parte da cultura, e não à parte. Para nos aproximarmos mais disso, precisamos dar um salto reflexivo e epistemológico. É importante também usarmos todo o espaço possível. De história em quadrinhos à literatura, passando por museus e publicações...

Agora que você saiu da Scientific American, qual será seu próximo passo dentro desse esforço?
Estou envolvido com o lançamento de um novo título de ciência. Também quero me dedicar mais à produção de livros. Estou terminando um que se chamará No Reino dos Astrônomos Cegos, contando a história da radioastronomia, que foi meu objeto de estudo no doutorado. Para mim, fazer ciência e fazer divulgação de ciência é algo inseparável. O que se busca em ambas as atividades é basicamente a mesma coisa: uma explicação para você e que você compartilha com os outros. Para mim, fazer pesquisa em história e filosofia da ciência e escrever sobre isso é parte de um todo, que só faz sentido no todo e não nas partes.

Biografia

Ulisses Capozzoli nasceu em Cambuí, no sul de Minas Gerais. Em São Paulo, formou-se e consolidou sua carreira de jornalista científico, iniciada em 1974 no Jornal da Tarde.

Cursou jornalismo na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), de 1972 a 1976. Antes de se formar em jornalismo, entrou para o curso de economia na mesma instituição, que nunca concluiu. Sua idéia inicial era trabalhar com jornalismo econômico. De fato, nos primeiro anos que trabalhou no Jornal da Tarde e em seguida na Folha de São Paulo, escrevia sobre o tema. Em 1983, entrou para o curso de extensão universitária no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. No mesmo ano, trocou o jornalismo econômico pelo jornalismo científico.

Entre 1987 e 1990, Ulisses estudou psicanálise na Biblioteca Freudiana Brasileira, em São Paulo. Ficou, durante esse período, afastado da Folha de São Paulo. Trabalhou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), editando a Revista Brasileira de Tecnologia, e depois na Assessoria de Comunicação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Voltou em 1990 para a Folha de São Paulo. Cerca de dois anos depois, foi para O Estado de São Paulo. Ali, participou da adaptação do Caderno 2 de domingo para um Caderno Especial recheado de conteúdo científico.

Em 1997, quando ainda trabalhava no Estadão, concluiu mestrado, na USP, em história da ciência; o doutorado, na mesma instituição, em história da radioastronomia, foi finalizado em 2003.

Ganhou, em 2001, a incumbência de tropicalizar a renomada revista americana Scientific American, e ocupou o cargo de editor até março de 2004. Atualmente, colabora com freqüência para o Observatório da Imprensa e está envolvido com o lançamento de outro título de ciência, que ainda não pretende divulgar. Pretende, ainda, dedicar-se mais à produção de livros.


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