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Fundação Oswaldo Cruz

Henrique Lins de Barros

O homem que sabia voar

Com três livros publicados sobre Santos Dumont e outros tantos artigos sobre o aviador, Henrique Lins de Barros é possivelmente o mais ferrenho divulgador desse personagem que marcou a história brasileira, mas que permanece esquecido em outros cantos do mundo.

Neste depoimento, o biofísico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) faz um vôo pela sua trajetória pessoal no campo da divulgação científica, que não se restringe a Santos Dumont, e aterrissa nos museus de ciência.

A partir de sua experiência na direção do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), de 1992 a 2000, ele discute os principais desafios que esses espaços têm à frente para criar um diálogo efetivo com o público geral, considerando-se as características culturais do Brasil.

Homem versátil, Lins de Barros discute a divulgação científica de forma ampla e provocativa. A entrevista a seguir foi concedida à Carla Almeida, em maio de 2004.

Leia aqui a biografia de Henrique Lins de Barros

Quando você começou a ter consciência da importância de levar o conhecimento científico para a sociedade como um todo?
Desde a graduação, meus colegas e eu discutíamos muito a questão da divulgação científica. Era um momento mais politizado. Vivíamos na ditadura militar. A discussão sobre a nossa função social como cientistas estava à flor da pele. Existia uma espécie de consciência coletiva de que estávamos em uma posição privilegiada, principalmente nós na PUC. Enquanto víamos outras universidades serem invadidas pelos militares, as cassações e prisões, a PUC era de certa forma preservada, pois tínhamos a proteção da igreja e da classe alta, que tinha dinheiro para pagar os cursos. A PUC só sentiu pesadamente a questão da ditadura quando foi invadida em 1969. Essa posição privilegiada nos levava a pensar na questão social. Tínhamos a consciência de que, se quiséssemos um país diferente, teríamos que trabalhar para isso. Não bastava se formar e ser um bom profissional. Além de bons profissionais, era preciso saber falar com a sociedade.

Qual foi a primeira atividade de divulgação científica que realizou?
Foi no CBPF, no início dos anos 1980. Darci Motta Esquivel e eu estudávamos, juntos, organismos magnéticos. Esses organismos, que coletávamos na Baía de Guanabara e na Lagoa Rodrigo de Freitas, despertavam a curiosidade das pessoas por ser um tema que engloba magnetismo e ser vivo. Começamos, então, a receber pessoas de fora, abrimos a porta da instituição. Isso nos fez ganhar certa visibilidade. Participamos de programas de TV, como o Globo Ciência [link], escrevemos matérias para jornais, demos entrevistas... No primeiro número da revista Ciência Hoje [julho/agosto de 1982], tem um artigo que Darci e eu escrevemos [“Orientação Magnética”] sobre a possibilidade de animais, e até mesmo o ser humano, usarem o campo magnético da Terra para se orientarem. Essas atividades eram modestas, mas foram o embrião de outras realizadas posteriormente.

Na década de 1980, a divulgação científica teve um crescimento considerável. Novas publicações foram lançadas na área, jornais diários passaram a dedicar mais espaço ao tema... Você costumava, já nessa época, participar de conferências e eventos sobre divulgação científica?
Participava. Pedro Leitão, que trabalhava no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), promoveu, no final dos anos 1980, no Rio de Janeiro, uma série de reuniões para grupos emergentes e grupos multidisciplinares, da qual participei. Na mesma época, houve uma reunião da Unesco, em Santa Catarina, para discutir a situação de grupos emergentes em países latino-americanos. Nessa reunião, discutimos muito a questão do surgimento de novas áreas de ponta e, também, a necessidade de os pesquisadores falarem à sociedade. A divulgação científica era uma área nova, que não tinha profissionais definidos, embora dominada, tradicionalmente, por físicos. Precisávamos discutir qual era o nosso papel.

Havia algum veículo para o qual você escrevia com maior freqüência?
Participei do conselho da Ciência Hoje, revista que abriu caminho para a divulgação científica brasileira. Na época, eu fazia parte da Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) do Rio de Janeiro. Participei do conselho do programa de televisão Tome Ciência, dirigido por André Motta Lima e exibido na TVE. Isso foi até eu ir para o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast).

Por que você foi para o Mast
Em 1989, o então diretor do Mast, Pedro Leitão, me convidou para fazer um projeto científico para o museu. Apresentei proposta de uma exposição que englobasse os quatro espaços que podiam ser aproveitados no museu. A idéia que eu tinha, e que acho que poderia ser desenvolvida em outros lugares, era de que os grandes temas científicos, nesse final de século XX e início de século XXI, estavam ligados aos nossos mitos de origem: origem do universo, origem da vida, origem da matéria e origem da informação. A ciência continua tentando dar resposta a essas questões primordiais da cultura. A minha idéia, na ocasião, era usarmos esses quatro cantos para acomodar quatro mostras, cada uma abordando uma questão relacionada à origem. Esses quatro espaços apontariam para o acervo instrumental do museu, constituído por instrumentos do século XIX e século XX. Minha idéia era atrair o público para temas enormes, sobre os quais simplesmente todas as pessoas têm dúvidas, e mostrar que existe uma leitura possível, através da ciência, e que ali têm instrumentos que foram construídos para isso. A exposição ficou com o nome Quatro Cantos de Origem, podendo cantos ser interpretado como localizações, ou como odes, que se homenageia, reverencia.

Qual o meio de divulgação científica que considera mais eficaz para popularizar a ciência?
O primeiro e fundamental é o museu, não pela sua repercussão, mas pelo seu patrimônio. Seu acervo remete à história, à cultura, a todas as variações políticas e econômicas de uma sociedade e reflete a tendência científica do mundo. O ideal seria que cada exposição, montada com a coleção do museu, gerasse uma série de outras iniciativas abordando o mesmo tema. Por exemplo, decido fazer uma exposição sobre fósseis. Como tenho material rico sobre isso para montar a mostra, vou fazer também um livro sobre fósseis, um vídeo, um programa de TV, terei publicação de histórias em quadrinhos para falar para um público mais jovem, vou ter também uma publicação com curiosidades para atingir um público mais amplo. Ou seja, vou usar diferentes linguagens para abordar o meu tema.

Você considera os conceitos de hands-on, minds-on, hearts-on – adotados nos museus e centros de ciência de todo o mundo – apropriados para as instituições brasileiras?
Na década de 1970, nos EUA, o Exploratorium criou e espalhou o conceito de hands-on, baseado na idéia de um laboratório ideal para o ensino de ciência, com experimentos atraentes. O conceito é gerado dentro de uma sociedade em que as pessoas não se tocam, em que as pessoas não se falam, em que o movimento nas ruas é absolutamente contido em suas expressões corporais. Esse conceito não se aplica de forma alguma à sociedade brasileira, onde acontece justamente o oposto. Andamos nas ruas aos esbarrões e tropeços. Não quero dizer que isso seja bom ou ruim, mas é uma característica nossa. A nossa relação com o mundo vem de uma tradição de curiosidade e de contato, que é um pouco o nosso lado índio. Nossa sociedade, que não tem essas barreiras, não tem que importar essa idéia, mas importou. Em seguida, surgiram os conceitos de minds-on e hearts-on. Primeiro é a mão, o tato; depois vem a cabeça; depois, o coração. Segundo esses conceitos, assim se dá a interatividade. E, se não for interativo, não vale. Concordo, se não for interativo, não vale. Mas, para mim, a interação não se dá nem pela mão, nem pela cabeça, nem pelo coração. Ou, pelo menos, não se dá só por eles. Posso interagir de várias outras maneiras. Uma interação mais completa se busca nos elementos de cultura. Defendo o conceito de envolvimento. Quando faço divulgação científica, quero fazer com que o público faça parte do meu discurso, quero dialogar com ele para podermos chegar, juntos, a uma nova concepção. Eu mudo e ele muda. Essa é a minha maneira de divulgar ciência, incorporando as expressões culturais da sociedade. É preciso saber lidar com as ciências sociais, saber incorporar a antropologia, a sociologia, a filosofia, a economia nesse discurso. Aí, sim, se consegue um laço forte. Aí, sim, se consegue interagir com o interlocutor.

Que outros aspectos devem ser considerados na concepção de um museu de ciência?
O museu deve fazer pesquisa, manter acervo e falar com a sociedade. A questão da linguagem é muito importante e precisa ser bem discutida, porque o público é heterogêneo. Afinal, o museu está de porta aberta, entra quem quiser. É preciso, então, construir opções de linguagens satisfatórias para diferentes públicos. E é fundamental avaliar se a linguagem usada está sendo eficaz. O museu tem que ser multidisciplinar e ter um amplo espectro no campo científico e não uma visão restrita das áreas, porque as áreas são artificiais. A sociedade sente o impacto da ciência e da tecnologia, e não da física. No museu, esse aspecto fica claro.

Alguns pesquisadores/divulgadores defendem o uso mais amplo da TV na difusão da ciência. Esse é um meio eficaz?
O programa de televisão é efêmero demais. O comentário que a gente recebe quando aparece na tela é uma catástrofe. Falam que seu cabelo estava despenteado, sua roupa não combinava com o fundo, que falou muito rápido ou muito baixo. Quando pergunto: “Mas e o que eu falei?” As pessoas dizem que não se lembram direito. A imagem fica muito mais marcada, o conteúdo se perde. O uso da televisão e do vídeo é difícil por isso. Mas não devemos deixar de lado esses meios. São meios de muita penetração e muita exposição. Quando estive no Mast, fiz uns tantos vídeos científicos que têm sido usados em salas de aula, têm aparecido nas TVs a cabo e são usados por pessoas interessadas. É curioso como o tempo de resposta é longo. Muitas vezes recebo comentários de vídeos que foram ao ar meses antes e a pessoa gravou e viu com calma depois. O uso do vídeo ainda é, a meu ver, um desafio que vale a pena se encarar.

Como vê o papel do jornalismo científico na divulgação científica?
Acho fundamental o jornalismo científico. É o jornalista quem vai ter a sensibilidade de dizer que assunto é capaz de despertar o interesse do público e se tal linguagem é apropriada a esse público. Muitas vezes, o cientista tem a preocupação de buscar uma linguagem acessível, mas é preciso um termômetro que diga a ele se a analogia que está usando é suficiente para que o público entenda o que está querendo dizer. O jornalista faz essa ponte. No entanto, há dificuldades nesse contato. Por não trabalhar na área, o jornalista muitas vezes se apropria de forma equivocada de uma expressão usada pelo cientista. O erro não está no jornalista, está no pesquisador, que usou uma expressão comum em seu meio para simplificar um conceito científico. Ou seja, o especialista busca uma falsa analogia e engana o jornalista. O problema é que, quando a matéria sai no jornal, o cientista, com raiva, culpa o jornalista. Mas a culpa está na fonte de informação. Quem informa é o pesquisador, que é o especialista naquela área. Se ele não é feliz na informação, não pode culpar o jornalista. O jornalista é fundamental, ele é ponte imediata para um trabalho de divulgação.

Você já teve algum desentendimento com jornalistas?
Tive uma experiência desagradável, mas que não deixou traumas. Foi em um momento de uma campanha maciça de fora, em particular norte-americana, de impor uma falsidade histórica, de impor a primazia do vôo aos irmãos Wrights, em detrimento a Santos Dumont. Houve reação no Brasil e em todo o mundo. Várias entidades contestaram o teor da campanha, reconhecendo a importância dos Wrights, mas lembrando que não foram eles que inventaram o avião. O jornalista Salvador Nogueira, da Folha de São Paulo, assumiu uma posição pró-Wrights e começou a produzir matérias nesse sentido. Até ai tudo bem, direito dele. O problema é que trocávamos uma série de e-mails e ele usou alguns desses e-mails para mostrar que os meus argumentos em favor de Santos Dumont eram fracos. O que faltou foi uma ligação entre a informação que eu passava para ele e o questionamento que ele estava fazendo sem eu saber. Houve um mal-estar, mas que já passou.

Como surgiu seu interesse em Santos Dumont?
A história do Santos Dumont é curiosa, porque não tenho e nunca tive uma admiração pela pessoa do Santos Dumont, como muitos biógrafos e estudiosos têm por ele. Tenho, sim, um fascínio pelo avião. Para mim, o avião é a máquina mais atraente de todas, porque é bonito, porque voa, porque faz o impossível. Fui participar de uma banca em São Carlos, no início dos anos 1980. Na volta, cheguei em São Paulo muito antes da hora do meu vôo. Decidi, então, parar no Parque Ibirapuera e visitar o Museu Aeroespacial, que ficava na Oca. No museu, tinha uma réplica perfeita do Demoiselle do Santos Dumont, de 1909. O avião é lindíssimo, muito delicado, feito com bambu, seda, cordas de piano, com acabamento artesanal. Fiquei fascinado e decidi fazer um modelo do avião para mim. A partir de então, passei a vasculhar tudo sobre Santos Dumont em busca de informações sobre o Demoiselle. Mas não encontrava nada sobre o avião e o que encontrava estava visivelmente errado. Virou uma obsessão. Comecei a falar para todo mundo que estava procurando informações sobre o Demoiselle. Todo mundo tinha alguma coisa sobre ele. Muitas pessoas começaram a me dar livros, tirar cópias de documentos... Dois anos depois, tinha uma quantidade de material enorme sobre o aviador: recortes de jornal, folhetos, coisas que saíram em 1973, centenário de nascimento do Santos Dumont. Mas nada sobre o Demoiselle... Uns dois ou três anos depois, fui novamente convidado a participar de uma banca em São Carlos. Fui, dessa vez, com máquina fotográfica, trena, fita métrica, decidido a voltar ao museu para resolver o problema. Quando cheguei lá, o museu estava fechado. Chamei o guarda e contei uma história interminável, disse que era pesquisador do CNPq. Consegui, na conversa, que o guarda abrisse o museu e deixasse eu medir o avião. Voltei, fiz o aviãozinho e coloquei em cima do piano, na minha casa.

Foi a partir desse material reunido em busca das medidas do Demoiselle, que você escreveu os livros sobre Santos Dumont?
Também. Em uma conversa de bar, no Baixo Gávea, alguém falou que Tizuka Yamazaki ia fazer um filme sobre Santos Dumont e brinquei: “Ah, não vai, porque sei uma coisa que ela não sabe”, que eram as dimensões do Demoiselle. Em 1985, Tizuka me ligou e disse que queria conversar comigo urgentemente porque sabia que eu tinha uma informação importante sobre Santos Dumont. Expliquei que era uma brincadeira, mas ela disse que queria conversar comigo mesmo assim. Nós nos encontramos e ela ficou fascinada com o olhar de um físico sobre o vôo. Quando olhamos o avião, ele deixa de ser um avião, ele tem forças envolvidas, equilíbrio, sustentação, peso. A partir desses contatos com Tizuka, no projeto do filme, fui para França, financiado pelo CNPq, fazer uma pesquisa sobre Santos Dumont. O tema, nesse momento, já estava no sangue. Quando voltei da França, tinha um mundo de documentos e de informações. Fui convidado a escrever um livro, o primeiro que escrevi, publicado em 1986. Hoje, tenho três livros publicados sobre o aviador.

O que aconteceu com o projeto do filme de Tizuka Yamazaki?
O projeto não foi para frente. O orçamento era muito alto. Mas acabei trabalhando em outro filme, O homem pode voar, de Nelson Hoineff, que já está pronto em formato digital. Hoineff me convidou para escrever o roteiro do filme no início de 2003. Além do roteiro, fiz a pesquisa histórica. Consultamos os acervos cinematográficos da França, dos Estados Unidos e do Brasil. Encontramos uma quantidade de filmes sobre Santos Dumont que não tínhamos idéia da existência; imagens fantásticas de Santos Dumont, da primeira década do século XX, saindo do hangar com o dirigível, dando a partida no avião, levantando vôo, da multidão, dele posando. Esses filmes foram recuperados na França, foram digitalizados, as imagens foram limpas e ficaram de ótima qualidade. Criamos um roteiro de forma a tirar a atenção em torno do óbvio. Da história do Santos Dumont, todo mundo conhece o 14 Bis. Então, a idéia é enganar o público. O filme conta a história e, quando chega perto do 14 Bis, desvia da ordem cronológica, de forma a manter uma permanente tensão no espectador. O 14 Bis surge mais no final do filme, num ponto de confluência da história, juntando os vários pontos apresentados. A música, composta para o filme por David Tygell, é parte da narrativa: dialoga com as imagens e, em algumas horas, o filme é um belo balé ao ritmo do choro.

Você acha que a questão da disputa entre os irmãos Wrights e Santos Dumont pela primazia do vôo pode ser considerada uma falha na divulgação da ciência brasileira?
Sem dúvida. Os brasileiros têm um problema que não é só de divulgação científica, mas de auto-estima. Quando você fala de brasileiros importantes aqui, dizem que o indivíduo é homossexual ou que não é bem assim, que só fez isso porque estava em Paris. A crítica está sempre presente. Isso não acontece apenas em relação a Santos Dumont, mas em todas as contribuições brasileiras, em todas as áreas científicas e artísticas. Santos Dumont foi a pessoa mais importante da história da aviação até 1910, isto é incontestável. Todos os relatos de época colocam Santos Dumont acima dos Wrights. A história de Santos Dumont é um caricatura de como são tratadas algumas personalidades brasileiras. A partir dela, vemos o mesmo acontecer a Carlos Chagas, Oswaldo Cruz... Quando se reconstrói a figura desse ícone brasileiro, quando se humaniza essa figura, abrem-se as portas para encontrarmos várias contribuições brasileiras no campo das ciências e da cultura que são hoje ignoradas porque entraram no mesmo percurso equivocado de uma divulgação ruim.

Não há, no Brasil, muitos cientistas que escrevem livros de divulgação científica. Na sua avaliação, por que isso ocorre com freqüência em países desenvolvidos e não ocorre no Brasil?
Porque, no Brasil, se o pesquisador pára sua atividade científica para produzir um livro de divulgação científica, ele perde sua bolsa de produtividade. Para se escrever um bom livro, é preciso pelo menos dois anos de dedicação, mesmo assim, considerando que o pesquisador seja um bom escritor, com bom domínio de linguagem, com boa equipe trabalhando junto no levantamento de dados. Depois, mais seis meses para publicar o livro. No Brasil, esse tempo não é dado. Prefere-se pagar 20 mil dólares em direitos autorais para publicação de um autor estrangeiro. Pagar mais um montante para tradução, mais para revisão e colocar o livro no mercado brasileiro a mais de 40 reais, preço que apenas uma camada pequena da população tem possibilidade de pagar. Isso não acontece apenas na literatura, acontece também nas artes. Preferimos importar uma exposição a investir na montagem de uma brasileira. Preferimos gastar uma fortuna em seguros e premiar mais uma vez o imaginário de que lá fora é que se faz boa arte, boa ciência e boa literatura.

Como você faz para conciliar sua atividade de pesquisa e a produção de livros?
Não consigo conciliar as duas coisas. Abro mão da bolsa de produtividade. É o preço que pago. Não concordo com o regimento dessa bolsa, ela é uma bolsa elitista, que funciona dentro de modelos estrangeiros. Ela estimula uma competição que privilegia a mediocridade e não a verdadeira colaboração. Publica-se mais, é verdade, mas engessa a pesquisa. O pesquisador não pode mudar de área e caminhar na direção que a pesquisa aponta. Não vou abrir mão do meu compromisso de ser também um divulgador de ciência, então abro mão dos benefícios que uma bolsa me traria, que são benefícios muito pessoais. Acho mais importante falar à sociedade do que ganhar um trocado no fim do mês. É claro que esses trocados fazem muita falta, mas...

A literatura e outros meios de divulgar ciência funcionam, muitas vezes, como uma via única, do divulgador para a sociedade. Como fomentar uma troca mais ampla e mais equilibrada de cultura e conhecimento?
Essa divulgação de caráter doutrinário, que sai do divulgador – seja ele um pesquisador, seja ele um jornalista – em via única para a população, foi desenvolvida em outros países e o resultado foi uma catástrofe. Isso porque ela não respeita o primeiro elemento, essencial, que é a questão cultural. As comunidades constróem sua identidade dentro de um ambiente cultural, com valores próprios. Não há como ignorar esses valores e muito menos substituí-los. Pode-se, sim, dar-lhes elementos para que transformem sua realidade. Não adianta dizer que tal comportamento é errado e o certo é assim. Um exemplo é a questão do criacionismo. Não adianta falar para uma pessoa que tem como elemento fundamental de vida a igreja, que vê a bíblia como um texto sagrado, inviolável, que isso é asneira e que o certo é a teoria da evolução de Wallace e Darwin. Mesmo porque não há teoria científica que esteja certa e ponto final. É muito mais envolvente e bonito olhar o texto bíblico como um texto simbólico e Darwin e Wallace como uma interpretação científica desse texto bíblico. O próprio Darwin era um criacionista. Ele demorou 30 anos para publicar a Teoria da Evolução porque acreditava piamente que Adão tinha sido criado no dia 23 de outubro de 4004 antes de Cristo, por volta das 9 horas da manhã. Cabe mostrar a um criacionista que esse caminho, que levou Darwin a abandonar essa crença fechada e ampliar o horizonte, é um caminho que não viola aquela crença. Nada é incompatível. O problema é quando se tem a ciência como verdade. A ciência não é a verdade. A ciência é feita dentro de um contexto cultural que tem suas tradições, seus mitos, seu passado. E mais, a ciência é uma leitura muito pequena de um universo muito grande.

Você defende diferentes formas de divulgação para diferentes públicos e comunidades?
Sem dúvida. Primeiro, a divulgação científica é necessariamente regional, porque depende de uma linguagem e a linguagem é regional. Além de regional, a divulgação científica é cultural. É preciso tirar a máscara de que divulgação de ciência é diferente de divulgação de cultura. A ciência talvez seja o aspecto mais forte da cultura do século XX, enquanto o humanismo foi o aspecto mais forte do Renascimento. No século XV, aquela cultura deu valor ao homem e à produção do homem, o que resultou em grande criatividade. No século XX, deu-se valor à ciência. Temos hoje grandes desenvolvimentos no campo da ciência e, no campo das artes, houve um vazio. Para divulgar ciência também é preciso saber o que interessa à determinada comunidade. No Brasil, por exemplo, não adianta falar de aurora boreal. É interessante, curioso, bonito, fantasmagórico, mas moramos em um país em que é impossível ver uma aurora boreal, o Brasil não fica em uma região boreal.

Você defende, então, que a divulgação científica precisa estar diretamente associada ao cotidiano das pessoas ou que ela seja visível? Como fica a divulgação de temas, por exemplo, do mundo microscópico ou questões abstratas?
Sim e não. O fato de não ser possível visualizar não impede que haja um interesse real. O que acho fundamental é que se mostre que a ciência está falando de algo que existe e que influi no dia-a-dia. Nada impede que se fale da aurora boreal, pois é um tema curioso. Mas é preciso mostrar que se trata de um fenômeno que ocorre em determinadas condições, em uma região específica etc. E mostrar a razão pela qual ela não poderá ser vista aqui no Brasil. E ir além, mostrar a importância de se entender o fenômeno. O mundo microscópio ou as informações astronômicas podem ser bons exemplos disso. Sempre desperta o interesse ver uma imagem de microscópio, mas acho que devemos avançar e não simplesmente mostrar a imagem. Ao despertar o interesse, podemos ir além e mostrar outros aspectos da vida. A imagem do microscópio ou do telescópio, a aurora boreal ou outro elemento servem de gancho para se iniciar um diálogo.

O que muda na forma de divulgação científica com o avanço da tecnologia?
Na década de 1970, havia uma certa ilusão de que era possível explicar as coisas que existem no mundo. Tanto os fenômenos naturais, como – e principalmente – os artefatos industrializados e tecnológicos. Naquela época, podia-se explicar a uma pessoa leiga, que nunca tivera contato com a teoria eletromagnética, como um rádio e uma televisão funcionavam, porque os princípios por trás dessas tecnologias são facilmente explicáveis. Passados 30 anos, não é possível explicar como um computador funciona. A tecnologia de hoje, a digitalização, virtualização, trabalha com elementos abstratos. Isso tira a possibilidade de explicar essas tecnologias em cima de exemplos concretos. Tal mudança leva naturalmente a se pensar em uma nova maneira de divulgar ciência. Se, na década de 1970 ainda estava na moda pensar em centros interativos de ciência, eu diria que hoje precisamos pensar em uma outra perspectiva. Esses experimentos interativos têm sua função, sua utilidade, mas o impacto da ciência na sociedade ultrapassa o entendimento desses experimentos. A ciência e a tecnologia entraram de tal forma na vida cotidiana das pessoas e afetaram de tal forma hábitos e tradições que o que devemos divulgar, a meu ver, é o impacto de um desenvolvimento técnico nas relações tradicionais.

Biografia

Henrique Lins de Barros nasceu em 1947, no Rio de Janeiro. Em 1964, entrou para o curso de engenharia da Universidade Federal Fluminense (UFF), mas desistiu depois de um ano e meio, optando pela graduação em física na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), concluída em 1970. Da mesma instituição recebeu, em 1973, diploma de mestre em teoria atômica. Da PUC, foi para o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), onde se doutorou em 1978. No CBPF, entrou para a área de biofísica e estuda, desde então, bactérias magnéticas.

Lins de Barros voltou sua atenção nos últimos 20 anos ao estudo da vida e obra de Santos Dumont, que começou como um hobbie e terminou em “obsessão”, tornando-se um dos principais especialistas na vida e obra do aviador, sobre o qual tem três livros publicados.

Em 1989, foi para o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), onde ocupou inicialmente cargo de vice-diretor e foi idealizador da exposição permanente Quatro Cantos de Origem. Posteriormente, dirigiu o Mast, de 1992 a 2000. Dedicou-se, de 2000 a 2003, ainda no Museu, ao estudo da história da ciência e da história da técnica do vôo; voltando, depois, ao CBPF e às bactérias multicelulares. O pesquisador atua, ainda, em atividades de divulgação científica de maneiras diversas: escreve livros, artigos, mantém constante diálogo com jornalistas, produz vídeos de ciência, participa de congressos na área e o que mais “pintar”.


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