Fiocruz
no Portal
neste Site
Fundação Oswaldo Cruz

Marcelo Leite

Ciência como parte integrante da cultura

Embora a divulgação científica tenha conquistado mais espaço e relevância dentro da sociedade brasileira nos últimos anos, o jornalista Marcelo Leite entende que ainda falta consolidar no país uma cultura científica. “Acho inaceitável que as pessoas digam, sem enrubescer, que não entendem nada de ciência”, desabafa Leite. Ele mantém, desde 2002, uma coluna semanal de ciência na Folha de São Paulo, veículo em que iniciou, em 1986, sua carreira de jornalista científico.

Quando escreve ou fala para o grande público, procura tirar a ciência da torre de marfim e mostrá-la como uma atividade inserida no mundo real, político, econômico e acadêmico.

Para Leite, o dever de todo jornalista que trabalha na cobertura científica é, além de falar sobre as descobertas da ciência, dizer o que elas representam para a vida pública e as condições sociais em que são feitas. E, nessa tarefa, o profissional deve ter precisão conceitual e terminológica, complementada por uma visão crítica e maturidade intelectual. Para isso, defende, não precisa ter necessariamente uma formação instituída em ciências naturais, basta fazer cursos, participar de congressos, ler muito e investir em uma formação intelectual básica.

Nesta entrevista concedida a Luisa Massarani e Ildeu de Castro Moreira, em março de 2004, Marcelo Leite fala sobre sua experiência de quase vinte anos na Folha de São Paulo e sobre o papel que deve desempenhar o jornalista que cobre ciência no Brasil.

Na ocasião, Leite ainda trabalhava como editor da Folha de São Paulo, cargo que deixou de exercer em julho de 2004.

Leia aqui a biografia de Marcelo Leite

De onde vem seu interesse em ciência?
Tenho interesse em ciência desde sempre. Eu era moleque quando o homem chegou à Lua. Isso marcou muito minha geração. Sempre tive este fascínio pela ciência. Quando estava no colégio, pensava em estudar biologia. Esse era meu plano. Mas eu gostava de escrever, gostava de literatura. Na última hora, decidi fazer jornalismo. Mas sempre ficou um interesse forte pela ciência, uma admiração, um entusiasmo. Ao mesmo tempo, minha formação intelectual foi se afastando cada vez mais disso e se voltando para a área de ciências humanas. Fui estudar jornalismo, depois fiz um pouco de filosofia.

Na faculdade de jornalismo, deve ter sido difícil encontrar pessoas com o mesmo interesse pela ciência...
Dentro da área de humanas, os estudantes, ao contrário de mim, tinham preconceito em relação às ciências naturais. Eu era um pouco uma exceção à regra. Lia revistas como a Scientific American. Mas lembro o que me deu um empurrão. Foi uma entrevista que li do [Claude] Lévi-Strauss, que saiu em O Estado de São Paulo. Ele, um antropólogo, rei do culturalismo, falava da importância que via nas ciências naturais. Aquilo casou com um sentimento que eu tinha. Contou que no departamento dele tinha assinatura da Scientific American, da Science e da Nature, e que ele pressionava seus estudantes para lerem essas revistas, pois achava importante que um intelectual de ciências humanas tivesse conhecimento do que acontecia nas ciências naturais.

Como foi sua trajetória profissional até chegar ao jornalismo científico?
Entrei na carreira jornalística como revisor, em O Estado de São Paulo, depois no Jornal da República, do Mino Carta e Claudio Abramo. Eu ainda era estudante. Fiz greve no Estadão e fui demitido. O Jornal da República não foi para frente, durou seis meses. Meu primeiro emprego propriamente dito foi como repórter no Shopping News, um jornal de bairro, de distribuição gratuita. Acho que nem existe mais. Escrevia matérias sobre informática, medicina, educação, temas mais ou menos relacionados à ciência. Por essa afinidade e gosto pelo assunto, o chefe de reportagem acabava me colocando para cobrir esses temas. Depois, em 1983, fui para a Prodesp, a Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo, trabalhar numa revista de informática. Era a época do boom de computadores pessoais. Mas eu queria trabalhar na Folha de São Paulo. Era um jornal que já dedicava, naquela época, atenção ao jornalismo científico. Eu era um leitor da coluna de José Reis e já tinha uma intenção clara de trabalhar com essa área. Me inscrevi para um concurso para trabalhar no “Caderno de Informática”, mas fui preterido. Depois, teve um outro concurso para redator de “Educação e Ciência”. Prestei o concurso, fui selecionado e comecei a trabalhar como redator, no início de 1986. Apesar de ter trabalhado em diversas áreas diferentes na Folha, acabei sempre voltando para ciência.

Um pouco depois de seu ingresso na Folha, em 1989, o jornal criou um caderno sobre ciência. Você participou da concepção desse caderno?
Entrei na Folha em 1986 e, no começo de 1987, já era editor. Começamos então uma batalha para fazer um caderno. Era uma época em que havia uma certa flexibilidade, o jornal estava numa fase de experimentação, de criar cadernos... Durante um tempo, o projeto não foi para frente. Quando fui para a Alemanha, em 1989, o caderno “Ciência” foi criado. A primeira editora foi a Laura Capriglione, que tinha trabalhado comigo. Jesus [de Paula Assis] era assistente e, quando Laura saiu, ele virou editor. O caderno saía às sextas-feiras e chegou a ter oito ou mais páginas.

Por que o caderno “Ciência” foi extinto?
Quando voltei para o jornal, em 1990, o caderno ainda existia. Passei um tempo como repórter especial, depois virei editor de ciência. Ele foi extinto em 1992, numa dessas épocas de crise de economia. A Folha, de tempos em tempos, precisava conter custos, economizava papel, fazia reformas, mudava os cadernos, o projeto gráfico. Numa dessas reformas, o caderno foi extinto.

E como surgiu o caderno “Mais!”?
Na verdade, a idéia inicial não era extinguir o caderno “Ciência”, mas sim fazer um caderno novo, que reunisse “Ilustrada”, “Ciência” e “Letras”. Esses três foram fundidos no “Mais!”, um caderno dominical. O objetivo era ter um caderno de idéias, que incluísse ciências naturais. Já que o caderno ia acabar, achei legal criar algo que desfizesse um pouco essa separação drástica entre ciências humanas e ciências naturais. Mas é fácil de falar e difícil de colocar em prática. Não conseguimos fazer um caderno em que esses assuntos tivessem uma sinergia forte. Pelo contrário. Existe uma editoria que faz o “Mais!”; as páginas dedicadas a temas da ciência, no entanto, são feitas pela editoria de ciência. Até hoje há essa separação. Chegou a haver, no começo, uma certa união. Fazíamos reuniões de pauta juntos, onde se chegou a ter alguma troca, jornalista de ciência falando em ciências humanas e o pessoal de ciências humanas dando palpite na área de ciência. Mas durou pouco. São culturas diferentes e, por isso, é muito difícil fazer essa aproximação. Mas seria legal que isso fosse possível.

E como a Folha lida com a cobertura jornalística das ciências humanas e naturais fora do caderno “Mais!”?
A divisão entre ciências humanas e ciências naturais existe, não foi criada pelo jornalismo. Acho problemática, mas ela existe como conteúdo social e acadêmico. Outra questão é a divisão dentro do jornal. Tem dias em que a gente não sabe onde colocar determinadas reportagens. Tomamos uma decisão que, de certa forma, é feita caso a caso, com uma certa jurisprudência interna. Mas, na prática, ciências humanas são cobertas na Folha pelo “Mais!” e pela “Ilustrada”, no que diz respeito a essas interfaces que têm com o mundo da arte e da cultura. Na editoria de ciência, a gente trata de ciências naturais. São divisões que temos que ter, senão cria-se um problema insolúvel de quem vai fazer o quê. Além disso, as duas coberturas exigem do jornalista qualidades e capacidades muito diferentes. Do ponto de vista prático e intelectual, é muito difícil, quase impossível, cobrir as duas áreas.

A ciência já teve seu próprio caderno, foi subeditoria de “Internacional” e esteve incorporada ao “Cotidiano” e à “Educação”. Hoje é uma editoria. Quais os critérios da Folha na hora de decidir o espaço a ser dedicado a temas científicos?
De fato, há um movimento grande. Depende da conjuntura dentro da própria ciência e da conjuntura do restante do país e do mundo. Depois do Plano Real, por exemplo, a economia perdeu importância em termos da pauta do jornal. Houve uma certa estabilidade, parou a loucura da superinflação. Com isso, alguns assuntos tiveram chance enorme no jornal, e a ciência foi um deles. Até porque, em junho de 2000, por exemplo, teve a primeira entrevista coletiva de divulgação do genoma e, na mesma época, o caso da Xylella [seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa por grupo de pesquisadores brasileiros], que deram muito Ibope. Eu estava voltando dos EUA e me pediram um projeto para revitalizar a ciência no jornal, porque, depois das tentativas de juntá-la a outras editorias, perceberam que o assunto estava meio abandonado. Falei que ciência tinha que ser uma editoria, um assunto separado, porque é preciso uma certa especialização, o tempo de apuração é diferente. A proposta foi aprovada. Essa foi uma época de ouro, época de aquecimento do mercado de trabalho, salários subindo, contratações, uma maravilha. Teve aumento de espaço, aumento de equipe, que passou a ter cinco pessoas – eu e mais quatro.

Desde 2000, houve novos cortes?
Sofremos um corte de 40% da equipe. Hoje somos três. Temos um espaço fixo nos seguintes termos: a “Folha Ciência” sai sempre no final do primeiro caderno, pode vir na contracapa, pode vir antes, dependendo dos anúncios, local bastante nobre do jornal. Em relação ao tamanho do espaço, existe um compromisso verbal de não ser menos que meia página. [Comentário do editor: Em julho de 2004, após esta entrevista ter sido concedida, houve um corte drástico na redação e Leite deixou de ser editor de ciência]

Como você avalia esse movimento de expansão e retração?
A Folha tem a vantagem de – apesar de encolher e aumentar, ter altos e baixos – manter um certo investimento em jornalismo científico, que é razoavelmente constante e relativamente consistente. Mesmo em épocas de vacas magras. Isso vem de anos.

O espaço dedicado à política científica pela Folha é pequeno. Por quê?
A questão da cobertura de política científica é complicada e de difícil solução. Um dos problemas que a gente tem na Folha – e acho que não é só a gente – é que política vem fundamentalmente de Brasília. É preciso ter gente acompanhando o Ministério da Ciência e Tecnologia. Nesses cortes sucessivos de pessoal, acabou sendo uma área menos prioritária. Mas não é falta de interesse. A gente avalia que a quantidade de pessoas mais fortemente interessadas nesse assunto é menor. Não acho que o público em geral tenha tanto interesse em políticas públicas na área de ciência quanto tem em conteúdo da pesquisa e no impacto cultural da ciência. Os mais interessados são as pessoas da própria comunidade científica e de algumas áreas adjacentes, como alunos de universidade.

Você sente uma cobrança para que aumente a cobertura de temas de política científica?
Por incrível que pareça, não. O que é mais um indicador de que essa demanda é restrita. Ao contrário da demanda por conteúdo de ciência – o que chamo de divulgação científica nesse sentido mais restrito – que é forte. Por exemplo, a gente continua ouvindo que o jornal dedica pouco espaço para pesquisas nacionais, embora tenhamos aumentado o percentual de matérias sobre pesquisas brasileiras. Cerca de 40 a 50% do que publicamos hoje é sobre estudos desenvolvidos no Brasil, o que, de certo modo, é uma hiper-representação.

Qual o percentual de matéria dedicado à pesquisa paulista?
Não sei, nunca fiz essa conta. Mas claro que a pesquisa paulista tem uma hiper-representação. Primeiro, porque boa parte da pesquisa brasileira é produzida no estado. Depois, as nossas fontes mais tradicionais são os pesquisadores paulistas, porque estão perto, a gente conhece. Além disso, no quadro atual da “Folha Ciência”, todo mundo estudou na USP. Essas ligações acabam pesando.

Há dificuldade em manter contato com fontes de informação científica fora de São Paulo?
A gente se ressente muito de não ficar sabendo de coisas feitas fora de São Paulo. Faltam canais de informação profissionais sobre pesquisa produzida no país de um modo geral. Mas, aos poucos, isso vai melhorando. Os pesquisadores vão acompanhando nosso trabalho, gostam do resultado e passam a tomar a iniciativa de procurar o repórter, o jornal, para oferecer informações. Esse é o melhor dos mundos: não depender de canais institucionais, ter relação direta com o pesquisador. O jornalista, em geral, dá furo porque tem contato direto com a fonte. Mas essa comunicação, no jornalismo científico, ainda é muito incipiente. Os pesquisadores não têm esse hábito de divulgar para o público amplo o seu trabalho. Embora isso esteja mudando, ainda não dá para dizer que é um hábito generalizado.

Por que a maioria dos pesquisadores ainda não tem essa postura divulgadora?
Muitos acham que não precisam disso, outros não vêem o alcance estratégico de ver seu trabalho com visibilidade pública, porque provavelmente isso não tem efeito algum em conseguir verba. Não é como nos EUA, que a presença do cientista na mídia pode afetar fortemente o seu grant. Também porque muito pesquisador é gato escaldado, teve más experiências com a imprensa e prefere não ter outra.

Como você avalia, hoje, a relação entre jornalista e cientista?
A Folha e alguns órgãos que têm exercido jornalismo científico de forma mais profissional estão desfazendo esse mal-entendido entre jornalistas e cientistas. É um trabalho de anos e anos, feito tanto pelo jornalista individualmente, como também pelo órgão, que faz com que o pesquisador passe a reconhecer o trabalho de jornalismo científico como sério, sistemático. O pesquisador ainda tem medo de ser mal representado e se queixa constantemente de erros conceituais e do sensacionalismo. Mas isso você consegue superar com o resultado do seu trabalho, com o que publica, e desfazer essa série de mal-entendidos e preconceitos mútuos. Os cientistas que já trabalharam fora comparam e vêem. A cobertura de ciência no New York Times, Washington Post, Los Angeles Times e Independent não é diferente da cobertura que a gente faz na Folha. Estamos trabalhando com os mesmos instrumentos que qualquer jornalista científico do mundo trabalha, que é o acesso à pauta das principais revistas científicas, como a Nature e a Science. É muito comum que, dentre os artigos que saem na Science, a maior parte dos jornais do mundo escolha os mesmos para divulgar. Começamos a perceber uma certa coincidência na avaliação jornalística da importância do impacto.

Essa possível coincidência de escolha de artigos a serem divulgados não poderia ser resultado da forma com a qual os press releases são estruturados, que chama a atenção para artigos específicos?
Os press releases oferecem alguma priorização, mas que não é tão clara. É muito comum pegarmos o décimo assunto e não o primeiro, porque, inclusive, a gente começa a perceber que eles dão um certo destaque a um determinado tipo de assunto. Eles se preocupam com o que vai chamar mais atenção, com o que tem mais apelo. Talvez o fato de várias publicações do mundo fazerem a mesma reportagem tenha a ver com essa condução que eles fazem pela via do press release, mas eu diria que a gente já não cai mais tanto nessa armadilha. Já temos uma pauta própria. Com a persistência no campo de vários anos, você começa a ter critérios próprios.

É suficiente acompanhar a Nature e a Science para se ter um bom panorama do que está sendo desenvolvido mundialmente em termos de pesquisa científica?
A gente cobre sistematicamente três revistas: Nature, Science e PNAS [Procedings of the National Academy of Sciences]. Isso é muito pouco, perto do universo de journals existentes no mundo. O problema é que não é possível acompanhar tudo. Tenho ouvido daqui e dali avaliações terríveis de pesquisadores sobre essas revistas, que dão a entender que não são mais consideradas journals, mas, sim, publicações em que você publica se quiser ter visibilidade e impacto. Já vi pesquisador lá no NIH [National Institutes of Health], por exemplo, dando palestra sobre células-tronco e um dos presentes perguntou alguma coisa sobre a Nature. "Eu não leio Nature", respondeu o pesquisador. Mas o que nós vamos fazer? Não temos como acompanhar o universo como um todo. Esse é um problema que não sei como resolver.

Cada vez mais, um número maior de publicações científicas permite acesso gratuito via Internet. Qual o impacto disso no jornalismo científico?
O jornalismo científico vai ter que mudar. O jornalista vai ter que descobrir quem são as pessoas, no Brasil e no exterior, que estão nos nós onde conflui muita informação. Geralmente, um pesquisador jovem o suficiente para estar muito bem informado, mas velho o suficiente para ter experiência e saber filtrar o que presta do que não presta. Temos que achar esses pesquisadores e criar um relacionamento pessoal. Isso seria o ideal. A impressão que tenho é que a gente vai passar a depender mais dessas pessoas, seja para nos dar um parecer, seja para nos avisar sobre coisas importantes que estão acontecendo. Para o jornalismo científico, isso é um desafio enorme, porque a comunidade é grande demais. Em termos internacionais, nem se fala. Não poderemos continuar acompanhando só as revistas, porque acho que não vai ser suficiente. A rigor, já não é.

Mesmo com essas deficiências, você diria que o trabalho atual de jornalismo científico no Brasil é de alta qualidade?
Se formos parar para pensar como a gente fazia jornalismo há 15 anos no Brasil, acho que demos um salto em termos de qualidade e profissionalização. Ainda assim, quantitativamente, é um grupo muito pequeno de jornalistas. Deve ter menos de 20 pessoas que trabalham profissionalmente, seriamente, em jornais e revistas, e que fazem só isso. Mesmo porque os postos de trabalho são muito poucos. Quando entrei na Folha, há 18 anos, já havia algumas pessoas, como Ricardo Bonalume, que tinham, ou começavam a ter, uma ligação com ciência internacional. Álvaro Pereira Junior fez o programa [Knight Science Journalism Fellowships] do Instituto de Tecnologia de Massachusetts [Massachusetts Institute of Technology (MIT), em inglês]. Começaram a desenvolver a capacidade de olhar para pesquisa produzida fora do Brasil. Porque, até então, fazer jornalismo científico era cobrir a USP ou as Reuniões Anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Fazia-se muita reportagem sobre pesquisas que não eram importantes, só porque eram feitas no Brasil. Quando passamos a ter acesso a essas publicações internacionais, foi um mundo que se abriu e houve uma espécie de hiper compensação. Chegou uma época em que quase só publicávamos pesquisa que era feita no exterior. Daí começaram as críticas. Mas foi um universo que a gente descobriu e ajudou tremendamente a formação das pessoas, porque você era obrigado a ler papers em inglês, difíceis, e a achar gente que ajudasse a entendê-los. Então, teve um trabalho de capacitação do jornalista de ciência, que foi um pouco feita na marra, de uma forma meio autodidata, meio selvagem. Algumas pessoas ficaram, insistiram e conseguiram fazer uma carreira de visibilidade dentro do jornalismo científico. É o caso do Ricardo Bonalume, do Ulisses Capozzoli, pessoas que viraram uma espécie de referência. Isso elevou, de repente, o patamar.

Algumas pessoas defendem que o jornalista científico não depende de uma formação mais específica para ser bom. Que importância você dá à formação desse tipo de profissional?
Para mim, o importante não é ter diploma, mas sim talento jornalístico, no sentido de saber escrever, ser criativo e ter sensibilidade jornalística. O jornalista bom é aquele que consegue enxergar a relevância científica nas coisas e consegue empacotar isso de modo que as pessoas entendam. Para ter isso, não precisa de diploma. Agora, não dá para cobrir ciência sem se especializar um pouco. É importante se aprofundar em pelo menos uma área, fazer cursos, cobrir congressos, senão o jornalista fica desatualizado. Acho que deve haver uma formação neste sentido. Claro que é excelente se a pessoa tiver uma dupla formação, em jornalismo e em alguma área das ciências naturais. Mas não acho fundamental. Para escrever sobre ciência, basta um segundo grau bem feito. Toda a ciência que aprendi, aprendi na escola. Toda a minha formação acadêmica é em ciências humanas. O resto foi por autodidatismo, lendo revistas e livros de ciência e obras de referências, além de alguns cursos.

Mas nem todo mundo tem essa capacidade de se tornar autodidata. Na sua avaliação, seria interessante que os cursos de jornalismo oferecessem a oportunidade de os estudantes interagirem com cientistas de diversas áreas?
Acho que seria muito bom. Minha filha estuda jornalismo na USP. Pelo que vejo, os estudantes fazem uma série de disciplinas optativas em outras unidades, mas, normalmente, na área de humanas. Não sei se são oferecidos para estudantes de jornalismo optativas nas áreas de ciências naturais. Seria ótimo. Tem gente que defende que dentro do curso de jornalismo deveria ter uma disciplina de jornalismo científico. Quando eu tive, era uma confusão. Tentava-se tratar o jornalismo como ciência, não funcionava. Acho importante que o estudante tenha, no mínimo, uma exposição a temas de ciência, mas não vejo muito como dotá-lo de conteúdo suficiente para que saia preparado para trabalhar nessa área. Acho que fatalmente ele vai ter que fazer outros cursos ou aprender fazendo, como muitos de nós aprendemos.

E cursos de especialização em jornalismo científico na pós-graduação? São válidos?
Não fiz e não conheço ninguém que tenha feito. Sei que tem na Unicamp, na USP, no Núcleo José Reis. Mas não me parece que sejam experiências fantásticas. É difícil avaliar sem nunca ter feito e nem conhecer ninguém que tenha feito, mas, como disse, acho que não é uma área em que você precisa ter uma formação instituída. Acho que vai continuar sendo, durante muito tempo, uma área de formação livre, como acontece na maior parte do jornalismo. Você acaba aprendendo muito na própria profissão.

O que foi importante para você, na sua formação, para se tornar um bom jornalista científico?
As coisas que faço de bom em jornalismo científico, faço porque me especializei, fiz cursos, mas, fundamentalmente, por causa da minha formação em filosofia. Por causa dela, consigo ir um pouco além na cobertura de ciência em algumas colunas que escrevo. Olhando para trás, tenho a impressão de que minha formação em filosofia foi mais importante para o meu desempenho como jornalista de ciência do que minha formação em jornalismo e meus cursos em ciências naturais. Todo jornalista, não importa de que área, deveria ter uma formação intelectual, um pouco de noção de história da filosofia. Kant, por exemplo, era um filósofo que estava preocupado com ciência natural. As duas coisas não estavam separadas. A separação veio depois. Separaram como campos do saber, campos acadêmicos. É uma solução institucional, mas que causa problemas.

Que qualidades você prioriza na hora de escolher um jornalista para trabalhar com você?
Precisão. Faço um investimento forte em precisão conceitual e terminológica. Por outro lado, normalmente, os jornalistas que escolhem trabalhar nessa área gostam muito de ciência, mas nem sempre têm a visão crítica da ciência, do processo de produção científica, que eu gostaria que tivesse. Na hora de escolher, a gente acaba tendo que comprometer algumas coisas para obter outras. Afinal, a gente não vive no melhor dos mundos.

Que papel deve desempenhar o jornalista científico na divulgação da ciência?
Essa é uma longa discussão. Eu não sou dos que acham que o jornalismo científico é feito para educar o público sobre ciência. Educar no sentido de ensinar, dar educação científica. Acho que isso é uma distorção muito comum. Nessa expressão “jornalismo científico”, acho que jornalismo pesa muito. Estou ali para falar de novidades, acontecimentos inéditos, do que está sendo feito de importante e de novo em ciência. Por outro lado, não acho que o jornalista deva mostrar só o conteúdo da pesquisa, é preciso ir além. Precisa mostrar o que a ciência representa para a vida pública, para a cultura. Enfim, tem que falar do contexto social em que é traduzida, para que o leitor se informe não só sobre o que a ciência obtém, mas também sobre as condições sociais de sua produção. Aí, entra tudo, o raciocínio, a construção do experimento, as escolhas de por que pesquisar isso e não aquilo. No entanto, nem sempre conseguimos esse resultado. Geralmente, o espaço e o tempo são reduzidos. Além disso, envolve um tipo de maturidade jornalística intelectual que nem todo mundo que está fazendo reportagem de ciência tem.

Que efeito, então, deve ter o jornalismo científico na sociedade de modo geral?
As pessoas precisam conhecer mais sobre ciência. A ciência natural deveria ser parte integrante da cultura, daquilo que se chama de cultura geral. Inclusive, trabalho com jornalismo científico por causa disso. Acho inaceitável que as pessoas digam, sem enrubescer, que não entendem nada de ciência. Na nossa cultura, é vergonhoso você não conhecer um pouco de literatura, de cinema, filosofia. Mas não é vergonhoso não conhecer ciência natural. Precisamos desenvolver uma cultura científica.

Como foi o desafio de substituir José Reis no caderno “Mais!”?
Em primeiro lugar, a idéia não era substituí-lo. Uma das motivações que me levou a fazer jornalismo científico foi a leitura das colunas do José Reis, mas minha proposta é muito diferente da dele. Nos últimos tempos, ele vinha fazendo um trabalho que não combina com a concepção mais moderna de jornalismo científico. Estava muito ligado à abordagem mais tradicional de divulgação de curiosidades, sem compromisso com a atualidade. Procuro, sempre com uma visão crítica, falar da ciência como uma atividade inserida no mundo real, político, econômico, acadêmico. Contar para as pessoas normais, por exemplo, como funciona a mecânica da publicação em ciência, o que é peer review, quanto custa... As pessoas não têm noção de como essa engrenagem do mundo da ciência funciona. Mas a coluna é muito curta, não dá para ser detalhista. Fico impressionado, toda vez que vou escrever, com a dificuldade de enfiar tudo ali. Agora, é uma responsabilidade enorme.

Como os pesquisadores que lêem sua coluna respondem às opiniões críticas presente nos textos?
Tem cientista que fica meio abespinhado quando você se permite ser crítico. Alguns ficam muito bravos, porque acham que jornalistas não entendem de ciência, como podem criticá-la? Mas, às vezes, acontece o contrário. O pesquisador fica, de certa forma, lisonjeado de perceber que o trabalho que ele faz tem um alcance que vai além do campo especializado em que trabalha, que tem repercussões culturais. Na área em que eu trabalho, tem algumas pessoas com cabeças mais abertas que vêem com bons olhos o fato de ter pessoas na área de ciências humanas refletindo sobre as implicações da genômica e da genética. Em 2003, por exemplo, fui convidado para fazer a conferência de abertura do congresso de genética. O convite foi uma grande surpresa. Ter uma atitude crítica, e às vezes até agressivamente crítica, como acho que algumas colunas que escrevi acabam tendo, não traz prejuízo. Pelo contrário, as pessoas continuam te respeitando. Desconfio que, em alguns casos, te respeitam até mais. Justamente porque percebem que ali tem alguma coisa a ser pensada que eles não estão pensando.

Biografia

Leite era menino quando, em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong entrou para a história como o primeiro ser humano a pisar na Lua. O acontecimento, que marcou sua geração, explica o fascínio do paulista pela ciência. Mas, embora tenha cogitado seguir a carreira científica no campo de biologia, pesou mais o gosto pela literatura: optou por estudar jornalismo na Universidade de São Paulo (USP), curso concluído em 1979. Ainda na USP, ingressou em 1984 em um mestrado em filosofia, que, embora tenha cursado dois anos, não chegou a concluir.

Em 1986, entrou para a Folha de São Paulo já com o intuito de trabalhar com jornalismo científico. Embora tenha ocupado cargos em outras áreas – foi Ombudsman, correspondente internacional em Berlim, editor de “Internacional” e de “Opinião” –, passou a maior parte de sua trajetória na Folha vinculado à ciência – foi editor da área em três períodos: de fevereiro de 1991 a agosto de 1992, de abril de 1993 a fevereiro de 1994 e de março de 2000 a julho de 2004. Desde 2002, mantém uma coluna de ciência no caderno “Mais!”, em espaço antes ocupado por José Reis.

Entre 1997 e 1998, em Harvard, participou do programa para jornalistas, Nieman Fellow, fazendo cursos nas áreas de economia de recursos naturais, mudança climática, teoria da evolução, biodiversidade e história da ciência. Em 2005, concluiu o doutorado na área de ciências humanas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Versão para impressão: