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Caminhos para enfrentar a leptospirose

Reunidos em evento realizado numa parceria entre IOC e Opas, especialistas internacionais discutiram avanços científicos e tecnológicos que devem ser priorizados

Em um estudo publicado em setembro deste ano, um grupo de especialistas convocado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou em mais de um milhão de casos e cerca de 60 mil mortes o impacto provocado todos os anos pela leptospirose. Apesar disso, não existem testes laboratoriais eficazes para o diagnóstico precoce da doença e as vacinas disponíveis previnem apenas temporariamente contra algumas variedades da bactéria Leptospira, causadora da infecção. O contraste entre o custo humano e econômico do agravo e a carência de ferramentas para combatê-lo foi destacado durante o Workshop Internacional para Pesquisa em Leptospirose com Base nas Necessidades dos Países, promovido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Rede Global de Ação Ambiental em Leptospirose (Glean, na sigla em inglês). Integrado à 5ª Reunião da Glean, o evento reuniu cientistas de quatro continentes, assessores da OMS e da Opas, além de representantes dos Ministérios da Saúde de oito países das Américas com o objetivo de traçar um roteiro para o enfrentamento da doença.

Gutemberg Brito

Com o objetivo de traçar um roteiro para o enfrentamento da doença, o evento reuniu cientistas de diversas partes do mundo, assessores da OMS e da Opas, além de representantes dos Ministérios da Saúde de oito países das Américas


O cenário global e regional da leptospirose, os desafios para o desenvolvimento de vacinas e as lacunas no conhecimento científico foram os destaques do primeiro dia do evento, em 10 de novembro. Organizadora do encontro, a pesquisadora do Laboratório de Zoonoses Bacterianas do IOC e diretora do Centro Colaborador da OMS para Leptospirose, Martha Pereira, ressaltou a integração entre pesquisadores e autoridades como um dos diferenciais do evento. “Neste encontro, queremos unir as prioridades científicas e de saúde pública, a fim de acelerar os avanços em algumas áreas e contribuir com a política de saúde global”, afirmou.

A mesa de abertura contou com o diretor do IOC, Wilson Savino; o diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz), Paulo Buss; a assessora da Opas, Cristina Schneider; o assessor da OMS e presidente do Glean, Eric Bertherat; o co-presidente do Glean, Michel Jancloes; e o coordenador da Unidade Técnica de Vigilância em Zoonoses do Ministério da Saúde, Eduardo Caldas.

Problema dobrado

A falta de registros para dimensionar o impacto da leptospirose sempre foi considerada pelos especialistas como um dos motivos para a pouca atenção que a doença recebe, mas esse cenário começa a mudar com a publicação dos resultados de dez anos de trabalho do Grupo de Referência sobre o Impacto Epidemiológico da Leptospirose, formado por cientistas reunidos pela OMS. A partir da revisão da literatura científica, os pesquisadores concluíram que cerca de um milhão de casos de leptospirose ocorrem por ano, com quase 60 mil mortes. O valor é o dobro do verificado pela OMS em 1999 através de um levantamento com os serviços de vigilância em saúde de diferentes países. Além disso, em consequência dos óbitos e das sequelas causados pela doença, 2 milhões e 900 mil anos de vida saudável são perdidos anualmente. Os achados foram publicados em setembro e outubro em dois artigos na revista científica ‘Plos Neglected Tropical Diaseases’. Um dos autores do estudo, o pesquisador visitante do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz (Fiocruz-Bahia) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Federico Costa afirmou que o trabalho evidencia a relevância do combate à leptospirose. “O número de mortes é maior do que o verificado para leishmaniose, raiva e dengue. Já a perda de anos de vida saudável chega a 70% daquela provocada pela cólera, que geralmente recebe muita atenção”, comparou o pesquisador.

Gutemberg Brito

Federico Costa integra o Grupo de Referência sobre o Impacto Epidemiológico da Leptospirose da OMS, que concluiu que cerca de um milhão de casos de leptospirose ocorrem por ano, com quase 60 mil mortes no mundo


Nas Américas, a Opas começou a reunir este ano as informações de registros de leptospirose. Em 28 países que enviaram os dados para a entidade, cerca de 10.500 casos foram contabilizados. Considerando o tamanho da população, a maior taxa de incidência da doença foi verificada no Peru, enquanto o Brasil foi responsável pelo maior número absoluto de ocorrências. À frente do projeto, Cristina Schneider considera natural que os países que já possuem programas para o controle da leptospirose, como o Brasil, registrem o maior número de casos da infecção, pois conseguem reduzir a subnotificação. Segundo ela, as características ambientais e socioeconômicas do continente americano também favorecem a disseminação da enfermidade. “Antes da criação desse novo sistema de informação, nós acompanhávamos a situação a partir de alertas de surtos. Entre 2010 e 2014, foram 772 alertas no mundo, e a região das Américas respondeu pela maior parte deles, com 429”, declarou.

Complexidade biológica

Transmitida pela urina de animais, a leptospirose é uma doença complexa do ponto de vista biológico. As 14 espécies de bactérias do gênero Leptospira causadoras da infecção são classificadas em mais de 200 sorotipos, sendo que cada uma destas variantes é reconhecida de forma diferente pelo organismo. Diversos animais, incluindo ratos, bois, cavalos e cães, podem ser portadores do micro-organismo, propagando a doença. Nos ambientes urbanos, o contato com a água contaminada pela urina de ratos em regiões com infraestrutura precária e durante enchentes é a principal forma de contágio. Já nas áreas rurais, o trabalho sem equipamentos de proteção favorece a infecção.

Para os especialistas, sem intervenções preventivas, os casos de leptospirose devem aumentar no futuro. “De um lado, temos as mudanças climáticas, que vão aumentar a frequência de inundações. De outro, existe um processo de urbanização intenso em países pobres, com o crescimento de áreas sem saneamento. Essa é uma porta aberta para a leptospirose e vai levar tempo para que sejam feitos os investimentos necessários para resolver esse problema. Enquanto isso, precisamos de avanços para enfrentar a doença”, avaliou Michel Jancloes.

Inovações necessárias

Melhorar os métodos de diagnóstico é um dos desafios científicos para controlar a leptospirose. Uma vez que os sintomas iniciais são pouco específicos – incluindo, por exemplo, febre e dor no corpo –, a confirmação laboratorial da infecção é importante. No entanto, a técnica considerada como referência até hoje é um método complexo descrito por volta de 1920 e chamado de soroaglutinação microscópica. “Quando observamos o quadro completo da leptospirose, percebemos que o centro do problema é a falta de um método simples para confirmação laboratorial. Isso prejudica o tratamento, o conhecimento do cenário epidemiológico e elaboração de medidas preventivas. Atualmente, temos o PCR [teste que detecta o DNA da bactéria em amostras de sangue de pacientes], mas ele ainda precisa ser utilizado em conjunto com outras metodologias, o que torna o diagnóstico demorado e difícil”, comentou Eric Bertherat.

Outra necessidade destacada pelos especialistas é o desenvolvimento de vacinas. Segundo o pesquisador Albert Ko, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, o maior desafio para produzir um imunizante contra a leptospirose é a grande variedade de bactérias do gênero Leptospira. A vacina elaborada precisa ser efetiva contra um amplo espectro de agentes, induzir imunidade de longa duração e ser acessível para os países em desenvolvimento. O especialista ressaltou a importância de investigar a população alvo da imunização para compreender como funcionará o processo. Segundo ele, o grupo mais exposto à leptospirose é o de homens adultos, mas mulheres e crianças também estão suscetíveis a contrair a doença. “Muitos programas são baseados na vacinação infantil. Porém, se o grupo de risco é composto por adultos, é preciso pensar em diferentes estratégias para distribuir a vacina”, comentou Albert, lembrando que nos ambientes urbanos, os mais pobres são os mais atingidos pela enfermidade por estarem expostos às más condições de saneamento básico e moradia. Estes fatores também contribuem para que a reinfecção seja frequente.

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Para Albert Ko, o maior desafio para produzir um imunizante contra a leptospirose é a grande variedade de bactérias do gênero Leptospira


Para alcançar este objetivo, o cientista considera que os pesquisadores precisam atrair a atenção da sociedade para conquistar investimentos. "A quantidade de dinheiro necessária para desenvolver vacinas é algo relevante. É preciso que haja um comprometimento político para questões de saúde pública. Esse é um desafio tanto no Brasil, quanto em outros países em desenvolvimento”, afirmou o especialista, que destacou também o papel do Brasil no campo da leptospirose. “Uma boa proporção das publicações sobre leptospirose é brasileira e acho que isso se dá pela importância da doença, pelo compromisso do país com a saúde pública e pelos investimentos feitos pela Fiocruz e pelo Ministério da Saúde”, ponderou.

Lacunas no conhecimento

Além de inovações tecnológicas, os pesquisadores consideram que avanços em pesquisas básicas, ligadas ao conhecimento sobre os mecanismos da doença, são importantes para o sucesso no combate à leptospirose. De acordo com Martha, o desenvolvimento de modelos experimentais do agravo, a identificação de biomarcadores e a investigação de processos tóxicos e hemorrágicos que podem ocorrer no curso da infecção são algumas áreas de pesquisa que podem ser exploradas com potenciais benefícios para a saúde pública. Para demonstrar a importância desse tipo de estudo, a pesquisadora citou o exemplo da hemorragia pulmonar. Forma rara de apresentação da enfermidade, essa complicação pode levar à morte após 72 horas do início dos sintomas respiratórios, um prazo insuficiente para a realização do diagnóstico sorológico da infecção. “Os estudos com modelos experimentais são uma ferramenta essencial para o entendimento dos mecanismos patológicos da leptospirose. Sem isso, o desenvolvimento de alternativas terapêuticas é muito prejudicado”, disse.

Gutemberg Brito

De acordo com Martha, entender os mecanismos da doença é fundamental para desenvolver novas terapias


Além de participar dos debates, os especialistas presentes no Workshop Internacional para Pesquisa em Leptospirose com Base nas Necessidades dos Países realizaram reuniões sobre temas como vigilância, manejo de casos clínicos e intervenções contra a doença animal durante os três dias do evento. A expectativa é que o encontro seja a base para elaborar um plano de enfrentamento global da infecção, que deve orientar as políticas de saúde, as pesquisas científicas e o desenvolvimento tecnológico.

12/11/2015
Maíra Menezes e Max Gomes
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz).

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