Publicada em: 15/05/2017 às 18:00
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Febre amarela: concluído sequenciamento do genoma completo de vírus associado ao surto atual
Jornalismo

Análise de amostras obtidas a partir de macacos identificou alterações no genoma viral. Possíveis impactos para a saúde pública ainda precisam ser investigados

O Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realizou os primeiros sequenciamentos completos do genoma de amostras do vírus da febre amarela referentes ao atual surto da doença no Brasil. Foram investigadas duas amostras de macacos oriundos do Espírito Santo, mortos em final de fevereiro de 2017. A análise apontou que os microrganismos pertencem ao subtipo genético conhecido como linhagem Sul Americana 1E, que é predominante no país desde 2008. No entanto, a partir da análise da sequência completa do genoma do vírus foi possível constatar a presença de variações em sequências genéticas que estão associadas a proteínas envolvidas na replicação viral. Não há registro anterior dessas mutações na literatura científica mundial. Os pesquisadores envolvidos na descoberta reforçam que os impactos para a saúde pública ainda precisam ser investigados e apontam para a necessidade de se avaliar mais amostras, relativas a locais diferentes e incluindo casos em humanos, macacos e mosquitos. Os resultados das análises foram divulgados na revista científica ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’. Os dados foram comunicados pela Presidência da Fiocruz ao Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde. Adicionalmente, dados ainda não publicados apontam os mesmos resultados para a análise de mosquitos coletados no Espírito Santo e para um macaco que veio a óbito no Estado do Rio de Janeiro.

O estudo partiu de uma constatação que vem ganhando cada vez mais espaço: a atual situação de febre amarela no país conta com lacunas de entendimento sobre sua dinâmica de dispersão. O surto é o mais severo das últimas décadas, e a doença tem se espalhado de forma rápida, com epizootias e casos humanos diagnosticados inclusive em locais considerados livres do agravo há quase 70 anos. Os pesquisadores do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus e do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC se dedicaram a buscar evidências que possam contribuir para esclarecer uma pergunta importante: existe algo de diferente no vírus da febre amarela que está circulando atualmente? “Nesse momento, o compromisso de cada um de nós, pesquisadores, deve ser de gerar conhecimento na sua área de especialidade e compartilhar essas descobertas, de forma acelerada, para que possamos contribuir para preencher um mosaico de evidências que permita ajudar a explicar o cenário atual”, afirma a pesquisadora Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC, que coordenou o estudo com o pesquisador Ricardo Lourenço, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC. Ambos integram a Sala de Situação para Febre Amarela Silvestre criada pela Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Foto: Gutemberg Brito

Liderados por Myrna Bonaldo e Ricardo Lourenço, ao centro, cientistas dos Laboratórios de Biologia Molecular de Flavivírus e de Mosquitos Transmissores de Hematozoários foram responsáveis pelos achados

Origem das amostras sequenciadas
Em uma colaboração com a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS), o Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários vem atuando na coleta de amostras de primatas e mosquitos em locais estratégicos para o estudo do risco de transmissão e de re-emergência do ciclo urbano da febre amarela. Foi neste contexto que, em final de fevereiro de 2017, o grupo coletou sangue de dois macacos bugios (da espécie Alouatta clamitans) que adoeceram em uma área de mata no Espírito Santo, confirmou a infecção pelo vírus e obteve o material genético para o sequenciamento do genoma. “Os bugios são especialmente importantes nas investigações sobre a febre amarela por serem considerados ‘sentinelas’: como são muito vulneráveis ao vírus, estão entre os primeiros a morrer quando afetados pela doença. Além disso, estes animais amplificam eficientemente o vírus em seu organismo, favorecendo a infecção de mosquitos que habitam as matas e a disseminação da transmissão silvestre, na qual os seres humanos são infectados acidentalmente. Por isso, sua morte dispara um alerta para a possível presença do vírus em uma localidade”, descreve Ricardo, que combina as experiências como veterinário e entomologista. As coletas foram realizadas por Filipe Abreu, estudante de pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC, que atua na equipe liderada por Ricardo. "Como há décadas não se registrava febre amarela na mata atlântica, pensei que não veria suas consequências na prática. Foi um enorme aprendizado ter a oportunidade de visualizar e trabalhar, em campo, com objeto de estudo da minha tese", o jovem biólogo comenta. [Clique aqui para conhecer as atividades desenvolvidas pelo grupo em Casimiro de Abreu, município onde foi registrado o primeiro óbito pela doença no Estado do Rio de Janeiro].

Foto: Divulgação

Os pesquisadores coletaram amostras de sangue de dois macacos bugios que adoeceram no Espírito Santo. Os animais são considerados 'sentinelas' para detecção da febre amarela por serem muito vulneráveis aos vírus

Análise do genoma do vírus
Após a extração do material genético (RNA) das amostras, foi realizado o processo de sequenciamento completo do genoma, atividade que contou com o apoio da Plataforma Tecnológica de Sequenciamento de DNA do IOC. As análises apontam para três principais evidências. Como primeira evidência, foi observada 100% de identidade entre as sequências genéticas dos vírus presentes nos animais – ou seja: os vírus tinham sequências genéticas idênticas.

A segunda evidência foi a constatação da presença de modificações no código genético dos vírus. Essas mutações foram identificadas quando a sequência genética completa obtida foi comparada à sequência genética completa de vírus relacionados a surtos ocorridos desde a década de 1980 no Brasil e na Venezuela, país onde a linhagem Sul Americana 1E também é predominante. Para a comparação, foram usados bancos de dados internacionais dedicados ao depósito de sequências genéticas. “As modificações que observamos são inéditas, não estão descritas em achados anteriores”, Myrna detalha.

A terceira evidência foi obtida na análise das proteínas virais, em um passo seguinte à constatação de mudanças na sequência genética. “De forma muito simplificada, o genoma é um código que tem o papel de orientar a produção de proteínas. Essas proteínas são a base da própria estrutura do vírus, formando seus elementos constitutivos, como as paredes do vírus, por exemplo. Podemos comparar o genoma a um roteiro: o vírus tem um repertório de proteínas que são fabricadas a partir da informação do genoma. Algumas mudanças genéticas não impactam as proteínas do vírus. Por isso, é importante observar se as variações genéticas poderiam modificar o repertório das proteínas fabricadas”, descreve a virologista molecular, que é especialista em flavivírus, grupo dos vírus dengue, Zika e febre amarela.

Foto: Josué Damacena

Alterações foram detectadas após sequenciamento do genoma completo e comparação com microrganismos relacionados a surtos ocorridos desde a década de 1980 no Brasil e na Venezuela

Foi identificado que as mudanças no genoma estavam relacionadas a oito substituições de aminoácidos (as moléculas que compõem as proteínas). Sete dessas substituições ocorreram nas duas proteínas mais importantes para a replicação viral, conhecidas como NS3 e NS5. É o processo de replicação do vírus – multiplicação pela produção de cópias de si mesmo – que garante que o microrganismo provoque a doença. Além do impacto sobre as proteínas relacionadas à replicação viral, também foi observada uma modificação na proteína C, que forma o capsídeo (envoltório que protege o material genético no interior do vírus).

Cientistas apontam a necessidade de novos estudos
Myrna Bonaldo ressalta que as implicações biológicas e epidemiológicas do achado dependem de outros estudos e que mais dados são necessários para esclarecer o eventual papel das alterações genéticas detectadas no contexto do atual surto da doença. “Temos uma evidência que constitui um elemento novo, algo que não tinha sido observado antes. Porém, ainda não sabemos quais os impactos dessas mutações. Por esse motivo, consideramos fundamental imprimir velocidade à divulgação dos achados, para que os diversos grupos de pesquisa do país que estão debruçados sobre o tema da febre amarela possam considerar esse aspecto em suas análises. A ciência se faz de forma colaborativa, com resultados que vão se somando”, avalia.

Os pesquisadores enfatizam que o sequenciamento do genoma de mais patógenos circulantes no surto atual, tanto em casos humanos, como em mosquitos e em macacos infectados, é fundamental para complementar as evidências obtidas na pesquisa. “Este é um resultado inicial. Não podemos generalizar, pois ainda não sabemos se esse vírus é predominante no atual surto”, afirma Ricardo Lourenço. Considerando que há um número limitado de sequências genéticas completas de vírus da febre amarela das Américas depositados nos bancos de genomas internacionais, não está descartada a hipótese de que esta alteração genética seja mais antiga, e que o vírus com esta característica esteja circulando há mais tempo e não tenha sido identificado antes.

Foto: Josué Damacena

De acordo com os pesquisadores, as alterações genéticas detectadas não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina

Tendo em vista que foram verificadas modificações na composição de proteínas importantes para a replicação viral, os pesquisadores consideram que é possível haver uma vantagem seletiva, refletindo-se na capacidade de infecção e disseminação do vírus. Entretanto, novas pesquisas são fundamentais para determinar se essas modificações no genoma são específicas dos microrganismos envolvidos no surto atual. “Nesse momento, estamos buscando amostras de genoma do vírus da febre amarela oriundas de diferentes hospedeiros – incluindo seres humanos, macacos e mosquitos – e de diversificadas origens geográficas – especialmente no Sudeste do Brasil, onde a epidemia tem sido mais intensa – para compreender melhor esse fenômeno”, informa Ricardo.

Sobre um possível impacto para a vacina disponível, os pesquisadores explicam que o imunizante adotado atualmente protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul americano e o africano. Além disso, as alterações detectadas no estudo não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina. Eles ressaltam que as sequências genéticas completas dos vírus analisados no estudo já foram publicados no GenBank, de modo a estarem disponíveis para comparações que possam ser realizadas por outros cientistas do Brasil e do mundo.

15/05/2017
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)


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