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Os encontros com Manguinhos

As interfaces do cientista José Rodrigues Coura com os destinos do Instituto Oswaldo Cruz e da Fiocruz remontam às visitas à biblioteca nos anos 1950, quando ainda era um estudante de medicina

Uma herança construída a partir de uma constelação de contribuições para a pesquisa científica e para a formação de jovens pesquisadores: com décadas dedicadas ao Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o pesquisador José Rodrigues Coura ainda se lembra do encantamento de colocar os pés pela primeira vez na biblioteca do Castelo Mourisco, quando era um jovem estudante de medicina na década de 1950. Também lhe é viva a memória da criação de importantes iniciativas para o ensino e da busca por melhorias para a instituição nos primeiros anos após seu ingresso na Fundação. Conheça três episódios que marcam o cruzamento dos caminhos de Manguinhos – como Coura costuma se referir carinhosamente ao IOC e à Fiocruz – e a trajetória do cientista, que celebra 90 anos de idade em plena atividade profissional.

O fim de mundo

“Você está maluco, ir naquele fim de mundo”, ouviu o estudante de medicina José Rodrigues Coura ao convidar os colegas da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para uma visita à famosa biblioteca do IOC. O tal ‘fim de mundo’ tinha nome: Manguinhos, que, na década de 1950, era uma localidade distante do centro do Rio de Janeiro, de difícil acesso e cercada de vegetação. Em frente, a hoje movimentada Avenida Brasil era uma via estreita, que ainda não imaginava um dia ser polvilhada pelas numerosas passarelas de pedestres que se tornariam sua marca registrada. Da instituição, provinham alguns dos mestres que ensinaram grandes lições a Coura: Carlos Chagas Filho, professor de biofísica; Olympio da Fonseca Filho, professor de parasitologia; e Thales Martins, professor de fisiologia. A paixão com a qual esses mestres se referiam às suas origens em Manguinhos inspirou Coura a conhecer aquele distante reduto da ciência.

Numa tarde de sexta-feira, em março de 1952, tomou o bonde Praia Vermelha-Centro, um segundo para São Cristóvão e outra condução que o deixou próximo ao portão principal, na Avenida Brasil. “Subi a ladeira e parei um pouco no topo para olhar os bustos de Carlos Chagas e Oswaldo Cruz. Em seguida, subi a escadaria até o primeiro andar do Castelo, quando começa o meu deslumbramento: os lustres coloridos, as paredes com os seus desenhos, as placas comemorativas, o ‘pé-direito’ alto e as enormes portas laterais, que davam, no passado, entrada para os laboratórios de Carlos Chagas, à direita, e Adolpho Lutz, à esquerda”, relembra Coura*.

Gutemberg Brito

Os bustos de Carlos Chagas (foto) e Oswaldo Cruz chamaram a atenção de José Rodrigues Coura em sua primeira visita ao Instituto Oswaldo Cruz, ainda na década de 1950


O objetivo era chegar até a biblioteca do castelo, fonte da qual se alimentavam cientistas e estudantes ávidos por conhecimento. “Subi ao terceiro andar, onde fiquei encantado pela biblioteca, com uma grande mesa central com as revistas da semana, expostas em fileiras, e várias mesinhas laterais onde estavam sentados alguns pesquisadores, com seus aventais brancos e pilhas de livros e revistas. Concentrados em suas leituras, através de suas lentes espessas e arredondadas, exalavam ciência naquele silêncio, quebrado apenas pelo tilintar dos pendentes dos lustres açoitados pelos ventos constantes naquele andar. Entrei sem ser notado, peguei uma das revistas expostas e, fingindo que a lia, admirava aquele cenário que me encantou na juventude e que ainda hoje me encanta”, descreve o pesquisador.

Peter Ilicciev/CCS/Fiocruz

O mesmo espaço que encantou o jovem estudante de medicina, a biblioteca do Castelo Mourisco também foi utilizada por José Rodrigues Coura para o desenvolvimento de inúmeros estudos e trabalhos científicos


Tendo a biblioteca como cenário, Coura preparou seminários e obteve as referências para as teses de doutorado e livre docência, duas teses de cátedras e diversos trabalhos científicos. “Aquela biblioteca foi uma inesquecível fonte de saber na minha formação e no que transmiti a centenas de alunos”, destacou.

Um interventor?

Em maio de 1970, um decreto do governo militar determinou a criação da Fiocruz, na época, ‘Fundação Instituto Oswaldo Cruz’, que agregou o IOC, o Instituto Fernandes Figueira, o Instituto Nacional de Endemias Rurais, o Instituto Evandro Chagas e o antigo Instituto de Leprologia. Dois anos mais tarde, o então ministro da saúde Mario Lemos convidou Coura, que atuava como professor titular e chefe do Departamento de Medicina Preventiva da UFRJ, para realizar um diagnóstico da situação da instituição recém-criada. A Fiocruz acumulava perdas com a cassação de cientistas, a destruição de amostras e de valiosos acervos científicos, no episódio conhecido como ‘Massacre de Manguinhos’ que marcou a história da instituição.

Os caminhos entre o pesquisador e Manguinhos se cruzavam pela segunda vez: “Me licenciei por três meses da UFRJ e solicitei ao ministro um economista para fazer um plano orçamentário e um especialista em pessoal para fazer um plano de carreira para a instituição. Percorremos todas as unidades incorporadas à Fiocruz. O primeiro contato foi com o presidente da Fundação na época, Oswaldo Cruz Filho, que nos perguntou se éramos os ‘interventores do governo federal’. Respondi que não, estávamos apenas fazendo um diagnóstico da situação para um plano de recuperação. Após visitarmos todas as unidades, chegamos à conclusão de que a Fiocruz era uma ficção, um verdadeiro caos. Não havia uma carreira profissional, não tinha orçamento, os salários eram miseráveis e poucos trabalhavam. Apresentei o relatório ao ministro e disse-lhe que havia duas opções: ou ele fechava a Fiocruz e fazia do castelo o Museu Oswaldo Cruz ou implementava um plano audacioso de recuperação. Ele convidou-me para implementar esse plano, mas não aceitei. Estava bem na UFRJ”, detalha.

Enfim, o entrecruzamento definitivo de caminhos

Do convívio com pesquisadores de Manguinhos, Coura firmou amizade com personalidades como Olympio da Fonseca Filho, Lobato Paraense, Herman Lent, Mario Vianna Dias, Gobert Araújo Costa, Ernesto Hofer e Hermann Schatzmayr. O terceiro e categórico encontro com o Instituto foi selado a partir do convite do então ministro da saúde Mario Augusto de Castro Lima, em março de 1979, para que exercesse os cargos de vice-presidente de Pesquisa da Fiocruz e diretor do IOC, que, à época, eram acumulados. “Levantamos as necessidades de todas as unidades e fizemos um relatório enviado ao novo presidente da Fiocruz, Guilardo Martins Alves, e ao próprio ministro”, conta Coura.

Pesquisadores convidados por José Rodrigues Coura para integrar o quadro da Fiocruz. Zilton e Sonia Andrade atuam na Fiocruz Bahia, Eloi Garcia é pesquisador visitante do IOC, Jane Lenzi aposentou-se do IOC em 2001, e Samuel Goldenberg é diretor da Fiocruz Paraná. In memoriam: Leônidas e Maria Deane, Luis Rey, Helio e Peggy Pereira, Zigman Brener, Henrique Lenzi


Sua estratégia foi captar cientistas renomados. “Contratamos diversos líderes de pesquisa que estavam disponíveis no Brasil ou no exterior, entre os quais Leônidas e Maria Deane, que estavam desterrados na Venezuela; Luis Rey, que estava se aposentando da Organização Mundial da Saúde; Helio e Peggy Pereira, que estavam se aposentando na Inglaterra; Zigman Brener, que aposentou-se na Universidade Federal de Minas Gerais para ficar em tempo integral no Instituto René Rachou; Zilton e Sonia Andrade, que se aposentaram na Universidade Federal da Bahia para ficarem no Instituto Gonçalo Moniz; Eloi Garcia, que saiu da Universidade Federal Fluminense para se integrar ao grupo de Carlos Morel no IOC; Henrique e Jane Lenzi, que vieram da Harvard, nos Estados Unidos; Samuel Goldenberg, que veio para se integrar ao grupo do Morel; e tantos outros que repovoaram o IOC e a Fiocruz”, enumera. “No final da minha gestão, em março de 1985, o IOC e a Fiocruz eram outras instituições: produtivas e respeitadas no Brasil e no exterior”, o cientista conclui. Coura ainda seria diretor do IOC, mais uma vez, na gestão 1997-2001, dessa vez escolhido por voto segundo a tradição participativa que foi instalada na instituição a partir dos anos 1980. Aos 90 anos, permanece em atividade no Instituto – demonstração de que os caminhos não mais se separaram.

*Os depoimentos do professor José Rodrigues Coura publicados nessa reportagem foram originalmente obtidos na ocasião das comemorações pelos 110 anos do IOC, em 2010.


Reportagem: Lucas Rocha
Arte: Jefferson Mendes
Fotografia: Gutemberg Brito, Peter Ilicciev e Ascom Fiocruz Bahia
Edição: Raquel Aguiar
14/06/2017
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