Publicada em: 11/04/2018 às 10:50
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Doença de Chagas: apesar dos avanços, negligenciada
Jornalismo

Aspectos da vivência, conquistas científicas e desafios no enfrentamento ao agravo deram o tom da sexta edição do Ciclo Carlos Chagas de Palestras, que destacou a descoberta, em 1908, do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença

Há 110 anos, o célebre pesquisador Carlos Chagas daria um passo que o colocaria para sempre na história da medicina: a descoberta do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença que recebeu o seu nome. Hoje, apesar dos avanços científicos e tecnológicos, a doença de Chagas ainda é considerada negligenciada e impõe desafios que vão do controle do agravo à busca por melhorias no tratamento e qualidade de vida dos pacientes. Para discutir o que ainda precisa ser aprimorado e os impactos do agravo que afeta aproximadamente três milhões de pessoas no Brasil, a sexta edição do Ciclo Carlos Chagas de Palestras, promovida pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), nos dias 05 e 06 de abril, reuniu mais de cem pessoas, entre pesquisadores, estudantes e pacientes.

Gutemberg Brito

Os avanços e os desafios em torno da doença de Chagas foram centro dos debates da 6ª edição do evento


Na cerimônia de abertura, o diretor do IOC José Paulo Gagliardi Leite destacou a participação de pesquisadores e estudantes com diferentes níveis de experiência. “O espaço para a discussão em torno da doença de Chagas é de grande importância principalmente para a troca de conhecimento entre os mais jovens e aqueles que já têm um pouco mais de experiência. A geração de conhecimento científico e a sua aplicação é um passo fundamental para ajudar a diminuir o sofrimento das pessoas afetadas pela doença”, ressaltou. Representando a Presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, o Vice-Presidente de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fiocruz, Rodrigo Correa de Oliveira, lembrou as ações do Programa de Pesquisa Translacional em Doença de Chagas (Fio-Chagas) e ressaltou os desafios no enfrentamento da doença. “Um dos grandes problemas que temos pela frente é o estabelecimento de métodos de diagnóstico mais precisos. A terapia é outro ponto importante que precisa de melhorias, uma vez que o tratamento atual é feito com o uso de uma droga que apresenta alta taxa de toxicidade”, pontuou.

Diagnosticada com a doença de Chagas em 2007, a representante da Associação Rio Chagas, Cleonice Braga, relatou a vivência com o agravo. “Descobri que tinha a doença porque uma irmã quase morreu e pediram exames para os familiares: todos nós tivemos os diagnóstico positivo. A partir de encontros em rodas de conversa sobre ciência e arte na Fiocruz, que discutiam as perspectivas e necessidades dos pacientes, vimos a necessidade de criar uma associação em prol da visibilidade e direitos das pessoas afetadas pela doença”, contou. Fundada em 2016, a Associação Rio Chagas foi apresentada à comunidade acadêmica durante a 4ª edição do Ciclo Carlos Chagas de Palestras [relembre]. A cerimônia de abertura também contou com a presença dos pesquisadores do IOC Joseli Lannes, chefe do Laboratório de Biologia das Interações, e Rubem Menna-Barreto, do Laboratório de Biologia Celular, ambos organizadores da iniciativa.

Os diferentes perfis do Trypanosoma cruzi
A conferência de abertura contou com a presença do médico e cientista Wanderley de Souza, diretor de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que abordou avanços no estudo da biologia do Trypanosoma cruzi. “O estudo das diferentes formas do T. cruzi pode contribuir para melhorias no tratamento e para o desenvolvimento de novos fármacos. Essas particularidades, que ainda precisam ser mais investigadas, podem estar relacionadas à capacidade do parasito de infectar um hospedeiro – ser mais ou menos infectivo, por exemplo –, assim como podem definir a caracterização das manifestações clínicas”, explicou.

Gutemberg Brito

“O estudo das diferentes formas do T. cruzi pode contribuir para melhorias no tratamento e para o desenvolvimento de novos fármacos”, afirmou Souza


Segundo o pesquisador, as investigações sobre os diferentes impactos da infecção pelo T. cruzi ganharam novas perspectivas com os avanços científico e tecnológico. Ele destacou a utilização de recursos de ponta na área da microscopia que permitem a visualização de características do parasito com riqueza de detalhes, como as técnicas de microscopia de fluorescência de super-resolução, de força atômica, de varredura de alta resolução e reconstrução tridimensional. “Até hoje não há muita clareza sobre o que faz com que, em determinadas regiões, haja mais acometimento cardíaco nos pacientes, enquanto em outras o impacto é mais evidente no sistema digestivo. Essas particularidades são discutidas por parasitologistas e pesquisadores da área da medicina tropical há muitos anos, no entanto, não havia uma abordagem experimental para tratar do assunto, uma vez que não existiam marcadores – hoje nós temos. Atualmente, podemos ‘revisitar’ esse problema que foi abordado há mais de 50 anos”, ressaltou Souza.

Em busca de melhorias para o tratamento
A grande variedade de populações do T. cruzi, que apresentam diferentes características morfológicas, de virulência, de patogenicidade e de susceptibilidade a drogas, torna mais complexa a pesquisa de alvos terapêuticos e vacinais. O pesquisador Alejandro Schijman, do Instituto de Pesquisas em Engenharia Genética e Biologia Molecular, da Argentina, abordou os efeitos distintos na patologia da doença de Chagas causados pela variedade genética dos microrganismos, que são classificados em seis genótipos, ou Unidades Discretas de Tipagem (DTUs, na sigla em inglês). Já o parasitologista Rubem Menna-Barreto apresentou pesquisas sobre a autofagia, um processo de ‘reciclagem’ celular que pode ser estimulado em patologias para eliminar proteínas acumuladas em células infectadas. Estudos apontam que a indução de mudanças no ambiente em que o parasito atua sobre o hospedeiro – como o estresse oxidativo, por exemplo – pode levar a um aumento da atividade autofágica. Também foram destaques as palestras dos pesquisadores Turan P. Urmenyi e Narcisa Cunha-e-Silva, da UFRJ, Marcia Paes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Salvatore Giovani de Simone, do IOC.

Outros olhares para a doença de Chagas
O segundo dia do Ciclo Carlos Chagas de Palestras contou com a apresentação oral dos quatro melhores estudos submetidos por estudantes de pós-graduação e jovens pesquisadores. Os trabalhos versaram sobre diferentes linhas de pesquisa sobre a doença de Chagas, com destaque para estudos voltados para a reversão dos danos cardíacos de pacientes na fase crônica. Entre os trabalhos apresentados, um estudo realizado por pesquisadores de diferentes Laboratórios do IOC revelou uma nova espécie de Trypanosoma, um parasito de gambá encontrado na Mata Atlântica. A nova espécie recebeu o nome de Trypanosoma janseni em homenagem à parasitologista Ana Maria Jansen, chefe do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC, por suas contribuições ao conhecimento dos tripanossomas. Além das apresentações orais, outros quatro trabalhos receberam menção honrosa.

Gutemberg Brito

Estudantes de pós-graduação e jovens pesquisadores apresentaram resultados de trabalhos em diversas linhas de pesquisa sobre a doença


Duas palestras encerraram as atividades em uma sessão integrada ao Centro de Estudos do IOC. O fotógrafo documentarista João Roberto Ripper apresentou imagens que retratam o impacto de doenças negligenciadas como malária, leishmanioses e a doença de Chagas. O trabalho é resultado de uma jornada de seis anos, que percorreu os rincões do Brasil, além de cidades da Argentina, Bolívia, Venezuela e Colômbia. “Tenho como proposta colocar a fotografia a serviço dos Direitos Humanos e da informação múltipla. Nessa trajetória aprendi a admirar o trabalho de médicos, agentes de saúde e profissionais de instituições como a Fiocruz e os Médicos Sem Fronteiras”, destacou. O trabalho do fotógrafo, que trabalhou como repórter-fotográfico de jornais, como ‘Luta Democrática’, ‘Diário de Notícias’, ‘Última Hora’ e ‘O Globo’, e em agências fotográficas, pode ser conferido online (clique aqui).

Gutemberg Brito

As palestras do fotógrafo João Roberto Ripper (à esq.) e do pesquisador da UNIFESP Sergio Schenkman encerraram as atividades do Ciclo, em sessão integrada ao Centro de Estudos do IOC


Para sobreviver no organismo de um hospedeiro, como o ser humano, por exemplo, o Trypanosoma cruzi precisa encontrar condições específicas para crescer e se manter. Pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Sergio Schenkman discutiu estratégias da bioquímica e proteômica que podem ser utilizadas para interferir nessas condições. “A ideia é descobrir quais são os pontos críticos para a sobrevivência do parasito, ou seja, encontrar e bloquear a fonte de nutrientes mais limitante ao crescimento. Estamos desenvolvendo estudos para tentar entender o mecanismo de reconhecimento da presença dessas fontes de energia pelo T. cruzi. Quando os nutrientes diminuem, por exemplo, ele ativa mecanismos para conseguir escapar” explicou Schenkman.

No encerramento das atividades, os organizadores avaliaram a 6ª edição do Ciclo, realizada com o apoio da Vice-diretoria de Ensino, Informação e Comunicação do IOC. “O evento contribuiu para integrar os diferentes contextos da doença de Chagas: a pesquisa de qualidade, a vivência do paciente e a emoção, que é chave fundamental para manter viva a pesquisa desse agravo, mesmo diante de um cenário de restrição orçamentária que afeta diretamente no desenvolvimento científico”, comentou Joseli. “Cumprimos a nossa missão ao realizar um evento com grande qualidade científica e valor social. É importantíssimo diminuir as distâncias entre a academia e a sociedade e é isso que estamos empenhados em fazer”, complementou Rubem.

Reportagem: Lucas Rocha
Edição: Vinicius Ferreira
11/04/2018
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)


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