Como fazer da ciência um patrimônio público?
A década de 1980 marcou o início de uma série de atividades no Brasil voltadas à popularização da ciência: o surgimento de revistas de divulgação científica, a realização de eventos científicos abertos ao grande público e o surgimento de centros e museus de ciência pelo país. O físico italiano Ennio Candotti – naturalizado brasileiro em 1993 – teve participação importante nesse movimento, que, segundo ele, foi iniciado por uma “trupe de saltimbancos”. Ele lamenta, no entanto, a falência desses esforços em colocar as grandes discussões da ciência ao alcance do público.
Para Candotti, apesar de a ciência ter acesso restrito no mundo todo, a situação do Brasil é particularmente preocupante porque o sistema educacional do país ainda é frágil, principalmente no que diz respeito ao ensino de ciências. Nas escolas, não há espaço para atividades experimentais crescentes e sucessivas. E, em uma sociedade onde a grande maioria não tem familiaridade com esses conceitos e códigos básicos da ciência, não há como fazer divulgação científica, defende o físico.
Em seu terceiro mandato como presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Candotti conta, nesta entrevista concedida à Carla Almeida em junho de 2004, como se deu seu envolvimento com a entidade e como vem tentando ampliar sua atuação na sociedade.
O físico fala com uma visão crítica das suas primeiras atuações na divulgação científica brasileira, como a criação, em 1982, da revista Ciência Hoje e do projeto “Ciência às Seis e Meia”. Mais de 20 anos depois, avalia que os impactos dessas iniciativas foram tímidos e que há ainda muito a fazer para tornar a ciência um bem público, compartilhado pela sociedade.
Leia aqui a biografia de Ennio Candotti
Ennio, você ainda não perdeu seu sotaque italiano. Há quanto tempo você mora no Brasil?
Minha família veio para cá em 1952. A Itália vivia uma crise econômica muito grave, que levou o meu pai a emigrar para conseguir emprego. Ele tinha um velho sonho de viajar para a América Latina e acabamos vindo para o Brasil, para São Paulo. Me formei em física na Universidade de São Paulo (USP) em 1964, comecei a fazer um curso de pós-graduação, mas acabei indo para a Itália em fins de 1965, para Pisa, com uma bolsa que era em parte financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e em parte financiada pelo governo italiano. Fiquei dois anos e meio em Pisa; fui para Munique, na Alemanha; depois para Nápoles; de Nápoles para Milão e finalmente voltei, em 1974, para o Brasil. Dessa vez fui para o Rio de Janeiro, a convite da universidade federal.
Em seus projetos, gestões e atuações, costuma defender a interface entre ciência e arte, entre as ciências humanas e as naturais. Essa visão multidisciplinar está relacionada a sua formação? Você chegou a estudar alguma outra área que não a física?
Quando fui fazer graduação, tinha três opções em mente: arquitetura, física e filosofia. Escolhi física, mas, na verdade, também estudei filosofia uns três anos aqui nesse mesmo prédio da rua Maria Antônia [prédio onde fica a sede da SBPC em São Paulo e no qual a entrevista foi concedida]. De manhã estudava física, de tarde dava aula e à noite fazia filosofia. As aulas eram aqui. Eu pensava, a princípio, em fazer história da física. Essa foi a idéia com a qual fui para a Europa. Mas lá me convenci de que devia fazer física mesmo e que a história poderia ficar para mais tarde. Naquele período, participei de atividades e estudos de história da ciência, de política científica, de revista de divulgação científica... Quando voltei para o Brasil, surgiu naturalmente a adesão aos projetos de divulgação científica, ao movimento de recuperação do ensino na universidade. Coordenei durante muitos anos o ciclo básico do curso de física da UFRJ.
Como foi esse primeiro envolvimento com a divulgação científica no Brasil?
Minha ligação inicial com a divulgação científica foi mais pela SBPC. Aquela era uma época de conflitos políticos no país, ainda eram os anos da ditadura. A organização da comunidade científica parecia um elemento importante para a própria realização da pesquisa científica no país, ou seja, era uma necessidade fazer política naquela época. No mesmo ano em que cheguei, fui a Recife para a reunião da SBPC. Em 1975, fui para a reunião de Belo Horizonte. Nesse momento, já havia uma grande discussão em torno da questão nuclear. A hipótese de que o programa nuclear brasileiro estaria associado a um programa de fabricação de bomba atômica mobilizou muito a comunidade científica na época, e estive bastante envolvido nisso. Pessoas de várias áreas se uniram:
Darcy Fontoura de Almeida e Roberto Lent [link], que eram da biologia; Alberto Passos Guimarães e Luiz Davidovich, da física; Otavio e Gilberto Velho, da antropologia; a cientista social Regina Morel; Luiz Pinguelli Rosa estava voltando da Europa... Estávamos no meio de um turbilhão de discussões – o acordo nuclear com a Alemanha havia sido assinado em julho de 1975 – que exigia, de um lado, o fortalecimento da própria SBPC no Rio de Janeiro e, de outro, um exame multidisciplinar das questões.
Quais foram suas primeiras ações como secretário regional da SBPC no Rio de Janeiro?
Promovíamos eventos, conferências, tínhamos um boletim informativo... Foi quando surgiu, na SBPC, a idéia de se fazer uma revista de divulgação científica. Mas havia um conflito de visões: uma linha defendia que a revista deveria ser mais politizada e outra achava que a revista deveria ser apenas um veículo de divulgação científica, seguindo o modelo da Scientific American. Eu era da linha mais politizada. Na Itália, tinha colaborado com a Sapere, uma revista de divulgação científica que naquele momento era dirigida por Giulio Maccacaro, da faculdade de medicina de Milão, com um viés político, e minha idéia era fazer aqui uma revista parecida. Não achava que a questão da divulgação científica pudesse ser separada de uma definição política mais clara. Afinal, o que nos unia naquela época, o que nos mobilizava, era a política, a luta pela volta à democracia e pela volta à possibilidade de discussão aberta. A questão nuclear foi um bom pretexto para promover essas discussões.
Foi então que surgiu a revista Ciência Hoje?
A Ciência Hoje, em um primeiro período, foi pensada e discutida por Roberto Lent e Alberto Passos, que queriam uma revista mais ou menos como é hoje, sem muito envolvimento político. Não me envolvi muito nesse primeiro momento. Foi em uma segunda etapa que assumi a liderança do projeto. Obtive os recursos e chegamos a uma proposta intermediária entre uma revista mais politizada e uma revista mais neutra. Nessa época eu era secretário regional da SBPC. O presidente era Crodowaldo Pavan, que nos deu grande apoio. Outras pessoas que tiveram papel importante foram Lynaldo Cavalcanti, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e o presidente da Finep, Gerson Ferreira Filho, que, corajosamente, nos ofereceram os recursos necessários e não colocaram obstáculos ao tipo de revista que queríamos fazer. A reportagem de capa da primeira edição da revista, por exemplo, foi sobre a poluição em Cubatão associada ao progresso tecnológico na região, uma questão de forte impacto social.
Naquela época, algumas pessoas, inclusive José Reis, apontavam dificuldades em se fazer uma revista naquele estilo. Havia uma preocupação quanto ao custo da publicação, quanto aos colaboradores, em relação à linguagem adequada ao público leigo... Houve todas essas dificuldades?
Havia muito temor de que não teríamos autores, não teríamos público, não é verdade. Conseguimos logo um bom público. Tiramos 10.000 exemplares do primeiro número, com uma reedição de mais 10.000. No décimo número, estávamos com tiragem de 40.000 exemplares. Havia uma ótima repercussão. Também não foi difícil conseguir autores. Até mesmo a parte da publicidade se conseguiu resolver na época. A linguagem também não foi um problema. Tivemos sorte de encontrar logo bons editores de texto e a fórmula “cientistas escrevendo e editor reajustando os textos” foi muito bem sucedida. E tivemos um bom grupo de editores de arte que soube dar um formato e uma apresentação muito bonitos à revista.
Nessa mesma época estava ganhando força no Brasil um movimento mais amplo de divulgação científica. Você também se envolveu nessas atividades?
Junto com a Ciência Hoje, nascia na Secretaria Regional do Rio um programa de divulgação científica chamado “Ciência às Seis e Meia”. Era uma seqüência de conferências de divulgação científica em teatros. A idéia é que as atividades fossem realizadas para o grande público – assim como no projeto Seis e Meia, de divulgação da música popular brasileira – e que fossem apresentações participativas. Era complementar ao projeto da revista e foi um grande sucesso nos primeiros tempos. Quando passei a fazer parte da diretoria da SBPC, em 1985, consegui recursos para expandir a atividade em todo o Brasil. Nessa época, as atividades das secretarias regionais da SBPC foram muito ampliadas.
Diz-se que o “Ciência às Seis e Meia” nasceu em uma reunião na sua casa...
Sim, é verdade. Naqueles anos, as reuniões da regional da SBPC eram realizadas em casa e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), na Rua da Matriz. Lá estavam
Maurice Bazin, Jair Koiller, Tânia Araújo-Jorge, Solange de Castro e Ildeu Moreira. Éramos um grupo de divulgação, de animação. Dentro desse grupo de agitadores da ciência e da cultura, havia duas opiniões: alguns achavam que o projeto de fazer jornais e revistas de divulgação científica, como a Ciência Hoje, era uma boa proposta; outros, como Maurice Bazin, achavam que isso não era suficiente. Bazin acreditava na ação, que deveriam ser organizadas atividades práticas, interativas, junto com as conferências. Essa segunda linha de ação resultou na criação do Espaço Ciência Viva e de outros centros de ciência e na permanente busca de uma divulgação científica via o “fazer ciência”.
Você considera que toda essa agitação política, cultural e social tenha dado um perfil diferente na divulgação de ciência no Brasil?
Nós introduzimos um caráter mais político, aberto, participativo, ao processo de divulgação científica. Já havia uma atividade de educação científica em que cientistas escreviam para o grande público, preservando sua posição de cientista. O que procurávamos era uma aproximação com o público, novas formas de comunicação. Éramos uma trupe de saltimbancos que queria a ciência na rua. E, sem dúvida, tínhamos uma influência típica dos movimentos europeus de 1968. O 68 aqui teve um desfecho trágico, com guerrilha e contestações estudantis. Nós que viemos de fora, como Bazin e eu, não sofremos essa pressão, trouxemos novas alternativas para a função social da ciência. Havia, no mundo, uma grande vivacidade nas formas de expressão e popularização da ciência, o movimento “Ciência para o Povo” [“Science for the People”, em inglês] era um exemplo disso.
O que aconteceu com o “Ciência às Seis e Meia”?
Durou quase dez anos. Depois, o projeto foi esmorecendo. Perderam-se as grandes atividades, os telões, slides, o envolvimento do público, e se passou para conferências mais tradicionais, importantes, mas que atraíam um público mais limitado. Nesses últimos anos, o programa foi retomado pela Secretaria Regional da SBPC do Rio.
Como surgiu a Ciencia Hoy na Argentina?
Geralmente, os veículos brasileiros faziam divulgação do que acontecia na Europa e Estados Unidos. Se quiséssemos defender a divulgação do que é feito aqui, teríamos que envolver mais gente. Não só no Brasil, mas também de outros países latino-americanos. Assim surgiu, em 1986, a idéia de irmos para a Argentina. Tínhamos bons amigos que foram exilados pelo regime militar argentino e estavam no Brasil, como os irmãos Mario e Juan Jose Giambiagi, Miriam Giambiagi e Juan Mignaco, todos físicos. Logo se verificou a possibilidade de encontrar um grupo na Argentina semelhante ao nosso. Durante dois anos, fomos articulando essa aproximação, até que, em 1988, fui passar um ano lá para implantar o projeto. Estivemos muito próximos de conseguirmos o mesmo no Chile e no México. Mas os ventos no sul da América, a partir de 1989, começaram a soprar na direção do neoliberalismo e contrários à integração latino-americana. Foi o tempo de Collor, de Menem. Foram tempos mais difíceis para a cooperação científica entre esses países.
Em que pé anda as relações Ciência Hoje e Ciencia Hoy?
No início, com a Argentina aderindo ao projeto, pensávamos que teríamos uma revista em espanhol, com a qual poderíamos colaborar e ter artigos com uma variedade de temas e interesses maior. Fizemos projetos gráficos idênticos para viabilizar inclusive a troca dos famosos fotolitos, na época. Os textos seriam traduzidos, mas as imagens poderiam ser aproveitadas. A idéia é que, juntos, teríamos um público para edições com tiragens de 50.000 mil exemplares ou mais. Mas não foi bem assim. Outra idéia que surgiu, de fazer a Ciência Hoje das Crianças em colaboração, também não vingou. A Ciencia Hoy passou por enormes dificuldades, mas sobreviveu. Na Argentina, ela ainda é bimestral e preserva o formato antigo da Ciência Hoje. Há ainda a troca de conteúdos, embora muito mais tímida do que se imaginava no início.
Quando a Ciência Hoje das Crianças deixou de ser um encarte da Ciência Hoje para ser uma revista própria?
Vivíamos uma crise financeira gravíssima na Ciência Hoje. Tínhamos que pensar em alguma coisa para a revista não acabar. Pensamos então em criar uma publicação voltada ao público infantil que o Ministério da Educação (MEC) pudesse comprar para distribuir nas escolas. O MEC não poderia comprar a Ciência Hoje porque a revista era voltada para o ensino médio e superior e o MEC não tinha recursos para isso. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) poderia ser usado somente para comprar Ciência Hoje das Crianças. Então, em 1990, a Ciência Hoje das Crianças se transformou em uma revista mensal separada e vendida ao MEC. Esse foi um instrumento importantíssimo para sustentar o projeto Ciência Hoje. Cerca de um milhão de reais por ano que Ciência Hoje, Ciência Hoje das Crianças,
Jornal da Ciência, Ciência Hoje On-line precisavam naqueles anos para se manter vinha da venda da Ciência Hoje das Crianças para o MEC – creio que a situação é similar até hoje.
Embora seja considerada um marco na história da divulgação científica brasileira, a Ciência Hoje não atingiu um público tão amplo quanto pretendia. Na sua opinião, ela deveria passar por uma reavaliação de formato, linguagem e público?
Se tivesse que recomeçar, faria um tablóide de papel jornal. Apostei naquela época na idéia de que, se fizéssemos uma coisa bonita – em cores e bom papel, a exemplo da Scientific American e de La Recherche –, poderíamos romper as barreiras que cercam a área de divulgação científica. Hoje, vejo que não tínhamos razão. Alguns amigos argentinos tinham me alertado quanto a isso, que seria difícil sustentar a qualidade gráfica e a complexidade da edição, que poderia ser mais simples se tivéssemos um jornal de grande tiragem que alcançasse um número grande de pessoas. Talvez se tivéssemos sido mais modestos e militantes, se tivéssemos associado nossa militância política com um tablóide muito barato, teríamos tido mais êxito na tiragem e na sustentabilidade do projeto.
Por que, no início, foram relegados a segundo plano os textos escritos por jornalistas na Ciência Hoje?
Queríamos mostrar que era possível fazer os cientistas brasileiros escreverem, precisávamos educar escritores, formar gente que colaborasse. Quase não existiam autores na época. Poderia-se pensar em chamar jornalistas, mas jornalismo é outro projeto. O desafio era fazer com que gente da área acadêmica escrevesse para o grande público. Os textos deveriam ser assinados por cientistas para que eles pudessem se responsabilizar por aquilo que dissessem. E essas informações deveriam servir para enriquecer a bagagem de informações de um estudante, de especialistas de áreas próximas e de outras áreas e de jornalistas. Era esse o objetivo. E, nisso, tivemos êxito. Desde então, cerca de 2.500 cientistas já escreveram para Ciência Hoje. Muitos dos que escrevem hoje livros, escreveram na Ciência Hoje. Roberto Lent tem até livro para criança. O nome do livro é o mesmo do artigo [“100 bilhões de neurônios”] que escreveu no número 1 [julho/agosto de 1982] da revista. Mas ainda acho que é pouco. Deveríamos insistir mais nessa tecla. O movimento de mobilização da comunidade científica brasileira ainda é tímido.
Na sua opinião, o cientista continua sendo a melhor pessoa para escrever sobre ciência?
Não creio que seja a melhor pessoa. Esse era o projeto Ciência Hoje. Minha opinião é que precisávamos, e ainda precisamos, alargar o universo de fontes primárias da informação científica. Não adianta o jornalista entrevistar um cientista, porque o pesquisador nunca poderá se comprometer com aquilo que não sabe, com os limites de sua própria pesquisa. Ele vai dar só o resultado, só o lado bom. É difícil que um jornalista consiga mostrar as incertezas, os riscos, as falhas e o método usado. Enquanto que, pela redação direta, poderíamos convidar o leitor a uma melhor caracterização dos limites, do universo de valor daquilo que está sendo escrito. Minha impressão é de que se deve fazer jornalismo científico, claro, mas existe uma outra faixa, que a meu ver é necessária para que se possa fazer jornalismo científico por jornalistas. Um caminho em que os próprios autores produzem a matéria-prima. Quando o cientista assina, é responsável pelo que assinou e por aquilo que omitiu. Quando não assina, apenas fala com um jornalista, não é responsável por aquilo que deixou de dizer. Essa questão é delicadíssima na divulgação científica, acho que faz parte da charada da responsabilidade social do cientista.
Você considera que os veículos impressos de divulgação científica brasileiros atingem hoje um público amplo?
Para fazer divulgação científica, é preciso universalizar o segundo grau. A divulgação científica é como uma exposição em inglês. Não é difícil para uma pessoa que saiba inglês. Mas, para quem não sabe, é muito abstrata. Toda experiência científica é uma ação codificada, é uma ação escrita em uma língua própria, uma forma de comunicação que é própria daquela experiência. Há uma pré-teoria escondida atrás dessa experiência. Essa formação, a chave para interpretação desses códigos, deveria ser dada no segundo grau. No nosso mundo, o segundo grau não dedica às ciências a infra-estrutura necessária para que sejam ensinadas. Elas precisam de laboratórios, de um apoio experimental, que, em geral, as escolas não têm. Isso faz muita falta. Uma revista de divulgação científica é escrita para talvez um público de 500 mil leitores, em uma avaliação otimista. Precisamos ampliar bastante o público atingido. Essa era a idéia dos centros de ciência, dos laboratórios, oficinas, de uma iniciativa de maior interação do público com o mundo da ciência.
Os centros e museus de ciência conseguiram ampliar o universo de pessoas atingidas pela divulgação de ciência no Brasil?
Se não há uma formação mínima sobre os conceitos da ciência, uma experiência de divulgação nada mais é do que um show, simpático, divertido, mas não chega a fixar nada. Para contar, é preciso que os “personagens da história” sejam claros para todos. Há um universo de perguntas que o pesquisador faz ao estudar um fenômeno que não estão explícitos na experiência. Colocar um pião para rodar e dizer que ele se equilibra, o que não faz quando não está rodando, é relativamente simples. Mas milhares de pessoas andam de bicicleta sem nunca terem percebido que o princípio que os mantém em equilíbrio é semelhante ao que mantém em equilíbrio o pião. Fazer com que o pião seja semelhante à bicicleta é uma coisa que exige um pouco de abstração, de teoria, de definição de uma linguagem e de alguns princípios de observação. Se você não oferece essas indicações, a observação se torna apenas um olhar. Enquanto o ensino médio não suprir essas deficiências, os museus de ciência seriam mais úteis se estivessem acoplados ao ensino e se fossem curriculares ou, pelo menos, se fossem mais pedagógicos em sua estrutura.
Como as escolas poderiam trabalhar melhor essa formação?
Deveria-se pensar em múltiplas formas de fazer o aluno prestar atenção em determinado fenômeno. Há diversas maneiras de se apresentar o conceito de massa, por exemplo. O importante é colocar uma criança em contato com múltiplas manifestações do mesmo fenômeno até que ela se dê conta da existência desse fenômeno e não apenas decore o seu nome. Para falar dos princípios de equilíbrio, é preciso parar a bicicleta para mostrar que, sem movimento, a pessoa cai; depois colocar as rodas em movimento e mostrar que assim ela pode se equilibrar melhor. Não se aprende a ler andando com um livro na cabeça. É preciso saber o que significam as palavras, é preciso saber interpretar os símbolos. Na ciência, também. Mas essas experiências básicas que formam o pensamento científico são muito precárias entre nós. As escolas não têm atividades nessa direção, atividades experimentais sucessivas, crescentes, não existem laboratórios. Então, a formação dos conceitos básicos é muito precária.
O Projeto Arquimedes, em cuja idealização você esteve envolvido, fala da criação de Oficinas de Ciência, Cultura e Arte (OCCAs) nas escolas que atuariam nesse sentido, de formar nas crianças, de maneira mais prática e lúdica, os conceitos básicos da ciência. Como anda esse projeto?
O projeto ainda está no papel. No final de 2001, apresentamos ao CNPq a proposta de montarmos cerca de dez OCCAs, e fazermos uma experiência de pelo menos três anos para avaliarmos os resultados. A partir daí, a iniciativa seria expandida por todo o país. O CNPq tinha aprovado o projeto, mas ele ainda não vingou. Em São Luís, até já conseguimos dinheiro para fazer a primeira OCCA, mas ainda estamos muito longe da implementação.
Enquanto não temos uma escola que prepare melhor os alunos para lidar com temas científicos, o que pode ser feito para que haja uma maior participação da sociedade nas decisões relativas à ciência?
Outro caminho completamente diferente e que tem sido percorrido é o de se discutir apenas os impactos da ciência. Mesmo que as pessoas não entendam muito bem os conceitos científicos envolvidos em uma questão, podem discutir os efeitos e impactos, as manipulações, os riscos. Para avaliar os riscos, o ideal seria que soubessem os conceitos fundamentais, para poderem julgar com informação. Mas isso não é trivial. Eu mesmo posso saber qual o princípio que faz funcionar o celular e, ao mesmo tempo, não ter uma noção clara dos riscos envolvidos no uso do aparelho. Podem-se discutir os riscos, os impactos, o patenteamento de uma invenção e a diferença entre a patente e uma descoberta, o que é público e o que é privado... Mas isso é fazer uma divulgação científica mais política, é popularizar a ciência pelo caminho político, no sentido de promover um entendimento do que é bom para todos. Acho que há como avançar por esse caminho.
Como você vê o quadro atual de atividades de divulgação científica em comparação ao movimento da década de 1980?
Não sei, não tenho ainda clareza. Tenho impressão de que a comunidade científica e a educação em ciências não mudaram muito de lá para cá. A grande diferença é o contexto. Há coisas que se pode fazer hoje que não se podia fazer em 1989. Há mais recursos para a área de ciência e tecnologia e há uma maior institucionalização das iniciativas em divulgação científica. O Jornal da Ciência e a Ciência Hoje, por exemplo, já existem respectivamente há mais de dez e vinte anos. Naquela época, essas coisas eram novidades. Sonhávamos com a capacidade de nos comunicarmos com velocidade. Hoje existe a Internet, com um e-mail, é possível informar o mundo inteiro. Esse fato novo ainda não foi muito bem assimilado. Por um lado, acomodou um pouco, mas, por outro, abriu possibilidades imensas de ação. Há um quadro diferente, não sei se ele está bem explorado. Mas o número de pessoas que escrevem para os jornais sobre política científica continua quase tão pequeno quanto antes.
Há quem ache que a SBPC perdeu importância com a abertura política do país. Você concorda?
Diria que não. Há uma certa simplificação nisso. As pessoas dizem que a SBPC ganhou maior visibilidade na época da resistência à ditadura. Isso não é verdade. A SBPC teve momentos de grande visibilidade na época da ditadura, mas não tinha instrumentos de fixação dessa visibilidade. Publicava apenas Ciência e Cultura. Os instrumentos de fixação surgiram depois. Há hoje o Jornal da Ciência, a Ciência Hoje, a Ciencia Hoy na Argentina, as atividades das Secretarias Regionais, a criação das fundações de amparo à pesquisa. Todas essas atividades que surgiram a partir da década de 1980 marcaram a construção da comunidade científica. Antes, havia menos gente organizada nos estados e a SBPC era uma atividade que ocorria, pontualmente, uma vez por ano. Fora dela se manifestava raramente. Depois da ditadura, ela passou a uma escala de presença nacional dez vezes maior. Nos anos 1990, já estava bem presente no congresso e no cenário nacional. Hoje, continua tão presente quanto.
Como você vê hoje o papel a ser desempenhado pela entidade?
Existe sempre uma discussão se ela deve ser uma entidade de grande presença em todo o país ou se deve ser uma sociedade de gente qualificada e seletiva na política nacional. Pessoalmente, defendo que deva ter uma presença política ampla e seja capaz de traduzir os conflitos, anseios e interesses dos diversos segmentos do universo da educação e da ciência – e não apenas dos mais seletos e concentrados. Essa é uma dupla personalidade que ainda não se resolveu. Em outras gestões, a diretoria da SBPC preferiu o recolhimento da SBPC, uma caracterização mais cautelosa, menos aberta, buscando representar a elite científica. Hoje, pela atuação nas regionais e com a multiplicação dos sistemas de divulgação, tentamos dar visibilidade aos múltiplos segmentos que formam as comunidades acadêmica e científica. Temo que se a SBPC não conseguir tornar a comunidade científica mais visível junto à sociedade, ela terá dificuldade em crescer, em se legitimar, a influir politicamente, porque há hoje uma tensão grande entre os avanços da ciência e os temores que ela desperta nas pessoas. Para desfazer esses temores, é preciso chegar mais perto do público, conquistarmos a confiança das pessoas e dos políticos.
O que representou receber um dos maiores prêmios internacionais de divulgação científica, o Prêmio Kalinga?
Devo confessar que tenho alergia a prêmios, títulos e concursos. Isso foi obra do pessoal da Ciência Hoje e da SBPC, que mandou meus documentos para Unesco. Mas receber o prêmio me levou a algumas descobertas. Conheci outros projetos e experiências. Passei a ter mais contato com o movimento internacional de divulgação científica, que muitas vezes é um movimento de publicidade dos fatos da ciência, de divulgação das belezas da ciência, um movimento um pouco alienado. Descobri também o movimento em torno da discussão dos riscos e dos mecanismos de participação pública em decisões relacionadas à ciência, como as consultas populares. No entanto, as grandes discussões ainda não alcançaram o grande público. Estamos sem instrumentos de massa para enfrentar os desafios que a ciência coloca na mesa para decisões. A fabricação da bomba atômica de hoje será novamente decidida pelos generais e não pela sociedade. Não será ela que vai controlar a clonagem, as manipulações genéticas ou os novos fármacos. Hoje, vemos movimentos religiosos crescentes como resposta doutrinária às incertezas da ciência e ao mundo que cresce sem pedir licença.
Nascido em Roma, Ennio Candotti veio para o Brasil em 1952. Em 1964, formou-se em física pela Universidade de São Paulo (USP), onde também estudou, durante três anos, filosofia. Em 1965, foi para a Europa; ali passou nove anos trabalhando e fazendo especialização em física e matemática.
Em 1974, a convite da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), voltou ao Brasil para dar aula no Instituto de Física da instituição. Na UFRJ, coordenou por muitos anos o ciclo básico do curso de graduação. Logo que chegou ao Rio, Candotti se envolveu com projetos de divulgação científica. Entre 1977 e 1981, foi secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Rio de Janeiro. Em 1982, na diretoria da entidade, Candotti participou da criação da revista Ciência Hoje . Em 1988, Candotti esteve na Argentina implantando a revista Ciencia Hoy, que até hoje trabalha em parceria com a edição brasileira.
Em 1996, foi dar aula na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e deixou a direção da revista. Em 1998, foi agraciado com o Prêmio Kalinga de popularização da ciência, concedido pela Unesco. Hoje, Candotti exerce seu terceiro mandato como presidente da SBPC, iniciado em 2003. Suas outras gestões, consecutivas, iniciaram em 1989.
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