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Fundação Oswaldo Cruz

Carlos Alfredo Arguello

Divulgando a ciência como um processo

Educar em ciência é educar no processo de fazer ciência. E o cientista, como melhor conhecedor do processo de fazer ciência, deve participar ativamente do ensino na área. A avaliação é do físico argentino Carlos Alfredo Arguello, um dos primeiros pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O cientista tem a obrigação de colaborar com a melhoria do ensino e da educação”, defende.

Arguello, que já dirigiu e dividiu o Instituto de Física da Unicamp com Cesar Lattes, acabou trocando o trabalho no laboratório pela dedicação à educação científica. Na Unicamp, criou o Núcleo Interdisciplinar para a Melhoria do Ensino de Ciências e, através dele, dirigiu uma série de projetos de formação de professores, principalmente indígenas.

No início da década de 1970, fundou, junto com docentes da Unicamp, o Museu Dinâmico de Ciências de Campinas, onde colocou em prática suas propostas para o ensino experimental e não-formal de ciência. Neste espaço, estimulou as crianças a fazerem suas próprias experiências, a acharem respostas às suas perguntas, tudo isso através de uma rica observação da natureza. “Da observação, surgem as perguntas, vindo as perguntas, há como construir a resposta com a criança. O ensino na escola nada mais é do que uma sucessão interminável de respostas a perguntas nunca dantes formuladas”, analisa.

Nesta entrevista concedida à Carla Almeida, em outubro de 2004, Arguello retoma sua trajetória como físico, seus primeiros anos na então recém-nascida Unicamp e conta como largou tudo isso e foi parar no Mato Grosso, em meio a comunidades indígenas, onde aprende e ensina ciência a diferentes etnias. Ele conta ainda de sua frustrante experiência na Guiné Bissau, África, onde foi, na década de 1980, ajudar a construir um currículo de ciência para o país.

“Nunca sonhei que viria a fazer o que faço hoje. Nunca imaginei que iria abandonar a hard science para trabalhar com educação científica”, confessa o físico.

O que lhe trouxe ao Brasil?
Casei na Argentina com uma brasileira que estudava no Instituto de Física Atômica comigo. Depois que nos formamos, decidimos vir para o Brasil. Fui contratado como professor pela Universidade de São Paulo. Lá, comecei meu doutorado, que terminei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, por volta de 1965.

O senhor foi um dos primeiros pesquisadores da Unicamp, instalada oficialmente em 1966. Como se deu o contato com a instituição?
A Unicamp foi criada a partir de três instituições que já existiam: a Faculdade de Odontologia de Piracicaba, a Faculdade de Medicina de Campinas e a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Rio Claro, que agora é parte da Unesp, mas, na época, era um instituto isolado. Terminei o doutorado em Rio Claro em 1965 e fui fazer pós-doutorado nos Estados Unidos. Quando voltei, tinha a opção de ir para a Unesp, para onde tinha se transferido a Faculdade de Rio Claro após a separação com a Unicamp, ou ir para a Unicamp. Escolhi a segunda opção.

Como era a Unicamp nesta fase de germinação?
Não era nada. Só tinha terra, plantação de cana-de-açúcar. Mas o reitor da época, o doutor Zeferino Vaz – um dos fundadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – levou a universidade para frente. Quando cheguei dos Estados Unidos, já tinha, no meu laboratório, um laser, um espectrógrafo e um monte de equipamento eletrônico que eu havia encomendado. O CNPq deu esse material para os pesquisadores voltarem ao Brasil. Ficou claro, desde o início, que teríamos todo o apoio para pesquisarmos. Zeferino tinha a seguinte mentalidade: não vamos fazer um grande prédio e depois encher de professores; vamos colocar um monte de professores apertados numa incubadora e, quando o grupo amadurecer, construiremos um prédio de acordo com as necessidades. Pouco a pouco foram criados os diferentes institutos com pessoas que ele trazia de vários lugares.

Isto foi durante a ditadura... Foi possível trazer os pesquisadores que estavam fora – por motivos políticos – de volta ao Brasil?
Muitos pesquisadores que estavam trabalhando nos Estados Unidos desejavam voltar. E havia interesse, no país, de repatriar estes cientistas. Existia entre os militares, sem querer justificá-los de forma alguma, a preocupação com o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil. A própria Unicamp cresceu de um projeto do governo militar. A proposta era formar uma universidade com excelência em pesquisa, mais ou menos no estilo da USP. O professor Zeferino, que era muito respeitado entre os militares, conseguiu trazer para a universidade pesquisadores de extrema esquerda.

Havia nesta época uma consciência coletiva sobre o papel social que o pesquisador deveria desempenhar?
Não. Não havia ainda esta mentalidade de prestar contas à sociedade nem de melhorar o ensino. As pessoas que davam entrevistas e que publicavam artigos em jornais para o grande público faziam isto para divulgar sua instituição, como propaganda. Mas creio que existia dentro de cada um a idéia de que o seu trabalho era útil ao país. Afinal, estas pessoas arriscaram tudo. Eu estava fazendo meu pós-doutorado e sabia que ia voltar, mas, para as pessoas que já estavam estabelecidas, muito bem pagas nos Estados Unidos, voltar para o país era uma aventura. Ainda mais com militares no poder. Tínhamos muito medo. Eu mesmo fui cassado na época do Maluf, quando eu era diretor do Instituto de Física. Mas, para nós, valia o sacrifício. Acreditávamos que a tecnologia de ponta com que trabalhávamos fora ia favorecer o desenvolvimento do país, como terminou acontecendo. Muitas empresas e grupos foram formando-se e, aos poucos, foi crescendo em volta da Unicamp uma espécie de Vale do Silício.

Na década de 1960, o senhor participou de diversas reuniões anuais da SBPC. Como avalia a importância destes encontros?
Meu contato com a SBPC foi extraordinário. Na época, a entidade era pequena e séria. Nas reuniões anuais, encontrávamos os cientistas que estavam produzindo. A primeira reunião da qual participei não tinha mais de 40 pessoas. Mario Schenberg, o professor Alfredo Tiomno e outras pessoas importantes da biologia, da física e da matemática estavam lá. Para mim, que era jovem doutorando, e depois doutor, esse espaço foi muito importante, porque foi onde conheci essas lideranças. A SBPC modificou completamente. Hoje, a reunião anual é um evento monstruoso. É importante também, mas tem outra característica. Eu, particularmente, não vou mais.

A SBPC tem hoje uma grande atuação na divulgação científica. Naquela época, já se discutia a necessidade de o cientista compartilhar seu conhecimento com a sociedade?
Não. Acho que, naquela época, baixávamos a cabeça e tratávamos de produzir e trabalhar, como uma avestruz. Não discutíamos muito a parte social do nosso trabalho; ela estava implícita à medida que achávamos que nossas contribuições podiam ser úteis para o país como um todo. Nunca sonhei que viria a fazer o que faço hoje. Nunca imaginei que iria abandonar a hard science para trabalhar com educação científica. Já trabalhei na África, trabalho com índio...

Quando surgiu o interesse pela educação científica?
Foi aos poucos. Talvez tenha começado por causa dos meus filhos, há uns 25 anos, quando nasceu o mais velho. Quando nos sentimos responsáveis por uma criança e percebemos a precariedade da educação, pensamos em contribuir para que o ensino seja um pouco diferente. Acho que instituições como a Unicamp e a USP, onde há muitos produtores de conhecimento, devem colaborar com a educação em outros lugares, onde a realidade é diferente. Acredito que educação em ciência é educar no processo de fazer ciência. E quem sabe como é o processo de fazer ciência? É o cientista, é aquele que faz ciência. Quem nunca fez ciência, mesmo que leia muito, não vai sentir as mesmas sensações, o mesmo prazer, o mesmo gosto, do que aquele que está fazendo ciência.

E aquele que está fazendo ciência tem consciência da dimensão do seu papel na educação e divulgação científica?
O cientista tem a obrigação de colaborar com a melhoria do ensino e da educação. Não é função só do cientista, nem só do professor, mas de uma equipe interdisciplinar, que faça como fizemos na Unicamp. Fundamos o Núcleo Interdisciplinar para a Melhoria do Ensino de Ciências, onde tínhamos representantes de vários institutos. Trabalhávamos juntos, biólogos, matemáticos, físicos, químicos... Nosso objetivo inicial era melhorar a formação dos professores do ensino básico da região de Campinas.

Como deve ser o ensino de ciência em sala de aula?
Tem que ser experimental, sobretudo nas escolas, porque tudo começa por observar a natureza. Depois, o aluno aprende a manipular a natureza com determinados instrumentos. Acho, inclusive, que o professor pode construir esse material. Até hoje construo o equipamento que utilizo. Com instrumentos simples, podemos auxiliar o ensino de ciência, basta dominarmos esses instrumentos.

Quando o senhor começou a produzir equipamentos com finalidades educativas?
Sou físico experimental, já construi aparelhos complicadíssimos. Com 16 anos, já tinha construído meu primeiro telescópio. Eu participava da Sociedade de Amigos da Astronomia, em Buenos Aires, uma sociedade amadora que oferecia cursos de como construir telescópios – um material de ensino não-formal feito por gente que nada entendia de educação. Mas a gente trabalhava bastante e isso me deu muita segurança para construir coisas.

Os professores são preparados para usarem materiais científicos nas escolas?
Em meados dos anos 1970, visitei várias escolas do Paraná para fazer um diagnóstico do ensino de ciência no estado. Os professores diziam que não podiam trabalhar porque não tinham equipamento para ensinar ciência. No entanto, íamos às escolas e elas estavam abarrotadas de equipamentos. Muitos deles quebrados, porque os professores não sabiam usá-los. Foi dado a eles equipamentos, mas não foi dado o conhecimento sobre como utilizá-los. Isto continua até hoje. Não adianta colocar um monte de instrumentos nas escolas, é preciso fazer um trabalho de capacitação de professores. Na Unicamp, tínhamos cursos de reciclagem de professores que foram apoiados pelo PADCT, da Capes, e pela Fundação Vitae. Demos aulas em vários lugares. Com isso, fui me distanciando cada vez mais da pesquisa, até chegar o momento que ficou impossível conciliar as duas atividades.

O Museu Dinâmico de Ciências de Campinas foi um dos primeiros frutos da sua dedicação à educação em ciência. Como foi a criação deste espaço?
Durante a Guerra Fria, o Brasil vendeu muitos produtos para os países comunistas. Mas eles não tinham dinheiro para pagar. Como a dívida foi crescendo muito, eles passaram a nos mandar, como forma de pagamento, equipamentos científicos e educacionais. Estes equipamentos foram distribuídos entre escolas e universidades por todo o Brasil. Mas, muitas delas não usavam o material. Cheguei a ver barracões imensos abarrotados de equipamentos. O Ministério da Educação começou a receber críticas por causa disto, mas não tinha onde colocar esses equipamentos. Quebrei o galho, mandei instalar vários em Campinas, um telescópio grande no Pico das Cabras... A professora Gilca Weinstein, com quem eu tinha trabalhado em um projeto do MEC, prometeu me dar um planetário se eu arranjasse um lugar para os equipamentos. Resolvi o problema e ganhei o planetário, que, na época, custava 400 mil dólares. Mas eu não sabia o que fazer com ele. Rogerio Cezar de Cerqueira Leite, amigo meu, era o secretário de cultura de Campinas nessa época. Propus a ele que usássemos o espaço do Taquaral, um grande parque em Campinas, para fazer um museu de ciências. Ele permitiu. Então, no início da década de 1970, alguns professores e eu montamos um museu, que veio a chamar-se Museu Dinâmico de Ciência de Campinas, uma parceria entre a Unicamp, a Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas, a Fundação da Universidade de Campinas (Funcamp) e a Academia de Ciências do Estado de SP. Eu representava a Academia de Ciências paulista na direção do museu.

Como foi o início das atividades do museu?
Criamos um museu que não tinha patrimônio, funcionários nem exibições. Mas atendíamos cerca de 3.000 crianças por mês. Não era aberto ao grande público; só recebíamos escolas. As turmas vinham para cumprir um programa determinado e ficavam quatro horas trabalhando conosco. Nossos exhibits eram a natureza, a observação do céu, das plantas... Tínhamos uma atividade chamada “Geologia na Beira da Estrada”. Colocávamos as crianças num ônibus e íamos ver várias formações geológicas importantes. Tínhamos vários projetos diferentes. Foi realmente muito interessante.

Não havia equipamento algum?
Quase nenhum. Se, na ciência, o primeiro passo é olhar a natureza, nada melhor que colocar a criança para olhar a natureza. Fazíamos experiências simples. Por exemplo, marcávamos um metro quadrado de grama com um barbante e pedíamos para as crianças fazerem um relatório da vida vegetal e animal que havia nesse espaço. As crianças olhavam e diziam que não tinha nada, que não viam bicho algum. Falávamos para olharem com mais cuidado, dávamos lupas a eles, até que começavam a ver um monte de coisas. Instrumentalizando a criança, ela é capaz de observar e de descobrir. Queríamos iniciar com elas o processo de fazer ciência. Da observação, surgiam as perguntas e, com as crianças, construíamos as respostas; diferente de como é feito na maioria das escolas. O ensino em sala de aula nada mais é que uma sucessão interminável de respostas a perguntas nunca dantes formuladas. A criança não tem interesse, está pensando em dançar, namorar, jogar futebol... É preciso motivar o aluno, mostrar a parte bonita da ciência. Esta parte não está nos livros, está no contato com a natureza.

Como o senhor avalia sua gestão a frente do museu?
Durante os dez anos em que fui diretor, funcionou muito bem. Tivemos vários êxitos. As crianças ficavam prestando atenção o tempo inteiro, esqueciam até de comer o lanche e de ir ao banheiro. Por outro lado, depois que o professor Cerqueira Leite saiu da Secretaria de Cultura, houve uma sucessão de secretários que não sabiam sequer o que era um planetário. Isto enfraquecia politicamente o museu.

O museu ainda mantém sua proposta inicial?
Depois que saí, há uns 11 anos, o projeto do museu ficou meio vago, passou da Secretaria de Cultura para a Secretaria de Educação, a prefeitura começou a tomar conta... Tentei preparar tudo para minha saída, mas hoje avalio que não fiz isso direito. É preciso formar pessoas. Este foi nosso equívoco, não ter conseguido passar o bastão nessa corrida e deixado que a prefeitura tomasse conta. O espaço continua funcionando. Mas trabalhar o ensino de ciência sem material é um grande desafio, não é qualquer um que faz. Depende da pessoa e do que ela tem a oferecer. Mas se ela só tem equipamento a oferecer, aí fica complicado.

Além do Museu Dinâmico, o senhor participou da concepção do Museu da Vida, da Fundação Oswaldo Cruz. Como foi esta experiência?
Concebi o Parque da Ciência [um dos espaços do museu], montei o circuito e fabriquei os equipamentos no quintal da minha casa. Ajudei também na concepção total do projeto. Foi um grande desafio. Fazer um museu de ciência coberto pode até ser relativamente fácil. Importa-se os equipamentos, treina-se os monitores... Mas montar um museu ao ar livre, onde tem chuva ácida, sol e diversos outros fatores, é complicado. E não é qualquer atividade que se pode fazer ao ar livre. Não há como trabalhar com uma câmara escura, por exemplo, em plena luz do dia. Por outro lado, o fato de estar ao ar livre é um aspecto interessante, pois é possível aproveitar elementos da natureza. Lá, há, por exemplo, um moinho de 10 metros de altura; não daria para colocá-lo dentro de uma sala. O emissor e receptor de som também precisam de muito espaço para ficarem tão afastados.

Quando e como o senhor começou a trabalhar a divulgação e educação científica no interior do Mato Grosso?
Faz uns 25 anos. Eu era responsável pelo Núcleo Interdisciplinar da Unicamp, que tinha uma série de projetos grandes de ensino. Um deles era o projeto Inajá, que começamos a desenvolver no início dos anos 1980, no Araguaia, em Mato Grosso. O objetivo era formar e habilitar professores leigos. Este projeto serviu como modelo para vários outros que existiram e existem hoje no Mato Grosso, como a Licenciatura Parcelada, o Homem Natureza, o Tucum I e II de educação indígena. Quando ainda estava na Unicamp, era difícil conciliar a coordenação de tantos projetos, mas como eu era um dos professores fundadores da universidade, tinha sido diretor do Instituto de Física, podia fazer o que quisesse. E como eu era muito briguento, preferiam mesmo me deixar num canto, dava menos trabalho. Nunca fui apoiado, mas fui tolerado.

Qual é a principal proposta destes projetos?
Nossa proposta é trabalhar muito a ciência, a linguagem, a história..., a partir dos conhecimentos tradicionais. Nosso foco é a criança. Trabalhamos desde o início com professores porque esta é a forma mais direta de atingir as crianças. Por eles, passam centenas delas. Criamos no Inajá uma disciplina chamada Problemas e Soluções no Sertão do Araguaia (PSSA), em que dividimos os professores em grupos para trabalharem em cima de um projeto, escolhido pelo próprio grupo. A idéia é, a partir deste projeto, analisar criticamente e de forma interdisciplinar a realidade que rodeia determinada comunidade. Uma vez que o problema é detectado, o grupo deve propor soluções para resolvê-lo. Eles podem inventar, encontrar soluções que já deram resultados em outros lugares, podem pesquisar, falar com as pessoas que já passaram pelos mesmos problemas. Trata-se de saber navegar na informação. Isto que é importante: ser crítico e saber navegar na informação. Depois, vem a parte mais interessante: propomos que a própria escola implemente as soluções encontradas. A escola passa, de um elemento passivo, a ser um elemento ativo. Já conseguimos resultados muito interessantes. Duas professoras, por exemplo, construíram 40 quilômetros de estrada no meio do mato. Claro que não foram elas que construíram, mas elas tomaram a iniciativa. Falaram com deputado, falaram com vereador...

O seu envolvimento com comunidades indígenas se deu através destes projetos?
Foi. No projeto Inajá, começamos a criar um laço com comunidades indígenas. Havia na nossa turma de professores índios Tapirapé e Carajá. Eles eram tratados como brancos, que eram a maioria. Mas começamos a notar que se diferenciavam muito dos outros. Decidimos então trabalhar um pouco mais próximos a eles. Fomos para Tocantins e desenvolvemos vários projetos com grupos indígenas. Depois, a Secretaria de Educação do Estado do Mato Grosso me pediu para assessorar o projeto Tucum de formação indígena, mais ou menos com a mesma filosofia do Inajá, mas com novas características. O curso tinha uma etapa presencial, quando estávamos em contato direto com os professores, e uma etapa à distância, desenvolvida por eles em suas próprias aldeias.

Qual a diferença de trabalhar com a comunidade indígena?
É bem diferente. Primeiro que a comunidade indígena não é um padrão. Com 40 etnias diferentes, temos 40 casos diferentes. Tem de tudo, desde os sem contato com a civilização até os mais aculturados. Tem uns que, há 50 anos, viviam como na idade da pedra. Então, dar aula e ensinar computação para uma pessoa cujos pais estavam na Pré-história é uma experiência única. Acho que só no Brasil é possível fazer isso.

É mais difícil ensinar para estas comunidades?
É meio complicado, porque as culturas são muito diferentes. No caso da matemática, por exemplo, eles não precisam do conceito de número. Eles contam até quatro, cinco, os mais sabidos até 20. Porque na cultura indígena a quantidade não é tão importante quanto na nossa, em que o acúmulo de qualquer coisa é importante. O índio não sabe dividir, mas ele faz uma operação muito mais complexa, que é a repartição. Quando eles vão dividir 10 maçãs por cinco pessoas, levam em consideração uma série de fatores. Primeiro, as maçãs não são iguais. Uma é maior, outra é mais madura... Depois, a necessidade de cada menino é diferente. Então, o mais democrático e mais eqüitativo não é dividir pelo número igual. Isto é uma simplificação enorme que fazemos quando aprendemos a dividir. Um índio que pesca para toda a comunidade, na hora de repartir, leva em consideração tudo isto, não precisa de números. Outra diferença é que, na cultura indígena, não há competição. Quando eles começaram a jogar futebol, por exemplo, todo jogo terminava empatado. Se uma equipe fazia muitos gols no primeiro tempo, depois deixava empatar. Eles também não têm o hábito de mentir. A tradição oral é tão importante para a cultura deles, que se habituaram a dizer a verdade. Claro que estou idealizando um pouco isto. Alguns foram educados em escolas de padres, outros estudaram em universidades, mas aqueles que estão em estado mais natural, a maioria com que trabalhamos, têm mais ou menos esse comportamento.

O que foi mais importante em toda esta experiência?
Foi um grande aprendizado para mim. Vivemos nossa cultura sem perceber como há valores ruins nela. Para nós, velho é velho, para eles, velho é ancião, é respeitado, respeitado mesmo; a criança, até dez anos de idade, só faz o que quer... É preciso viver isto para perceber essas diferenças e é preciso também viver na cultura do branco para perceber como somos ruins. Muito do que aprendemos com eles deveria, de alguma forma, ser implementado no ensino do branco.

O senhor falou em ensinar computação. Nestes projetos que coordena, há um trabalho de inclusão digital?
A minha mulher era a responsável pela parte de inclusão digital dos nossos projetos. Ela faleceu, mas o trabalho continua sendo feito. O computador e a internet são ferramentas importantes. Por mais que a transmissão oral seja uma tradição bonita e respeitada, um livro publicado na língua tradicional sobre a cultura indígena, ou sobre a cultura do branco, é muito importante para preservar a própria língua, pois assim ela fica registrada. Algumas línguas já se perderam e estão sendo recuperadas com esse trabalho.

Como foi sua experiência com educação científica na África?
No início dos anos 1980, fui trabalhar alguns meses na África, como assessor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Unesco. Fui ajudar a construir um currículo de ciências na Guiné Bissau, um dos lugares mais atrasados e pobres que existem. Fui porque Paulo Freire, que foi muito amigo meu, tinha feito um relato muito entusiasmado sobre o país. Na época em que ele foi, dez anos antes, havia um líder comunista que era um intelectual extraordinário. Mas fiquei chocado, não sabia que existia um lugar como aquele. É um país pequeno, onde há seis ou sete línguas diferentes e diversos dialetos. Algumas etnias têm como objetivo de vida roubar. Outros são muçulmanos e fazem aquelas práticas terríveis de mutilação da mulher. É terrível. Senti realmente muito desgosto com essas coisas. E era muito difícil trabalhar a parte experimental da ciência, como eu queria, pois não tinha material. Nem pregos conseguíamos. Nos perguntamos o que os portugueses fizeram com aquele povo. Em quase 600 anos de colonização, só foram fundadas duas escolas. Para mim, foi, de certa forma, uma experiência rica, mas um trabalho muito ingrato.

E o museu itinerante que o senhor está criando na Unemat? Em que pé está?
O museu itinerante ainda não é itinerante, porque não temos o transporte. Apresentamos um projeto à Vitae e estamos esperando uma resposta. Já temos uns 30 equipamentos prontos, que construímos, e mais de cem projetados na área de física e matemática. Depois, vamos ampliar para biologia e para outras áreas. No entanto, o museu pode ser itinerante se um prefeito, uma universidade ou uma escola quiser que a gente leve o museu até suas instalações. Basta que se responsabilize pelo transporte. Mas o ideal é conseguirmos um transporte próprio, porque, além de transportar os experimentos e os monitores, poderíamos fazer uma sala de microscopia, de multimídia, levar o planetário móvel que ganhei... Imagina, chegaríamos numa cidade com um bruta ônibus, montaríamos um planetário de sete metros, faríamos diversas atividades, seria muito bonito. Estou certo de que vou conseguir isso, mas queria que fosse logo.

Na sua avaliação, como anda a qualidade da informação disponível em ciência nos jornais?
A cobertura de ciência da Folha de São Paulo é a melhor, mas isso não quer dizer que seja boa. E também não é todo mundo que lê jornal. Quem lê faz parte de uma elite. Uma edição da Folha de São Paulo é tão cara no Mato Grosso que não é qualquer um que pode comprar. Eu, particularmente, gosto de ler sobre biologia, clonagem, sobre assuntos fora da minha área. Posso entender esses temas porque já tenho uma base científica. Mas, se fosse ignorante em ciência, não sei se conseguiria acompanhar. Me preocupo muito com o povão. Tem jornalistas que simplesmente pegam notícias da Nature e da Science – revistas da moda e sensacionalistas –, traduzem e publicam. Não é qualquer um que vai conseguir entender aquilo. E não é todo mundo que se interessa por aquilo. Acho que o jornalismo científico poderia ter um compromisso um pouco maior com a educação em ciências. Não basta divulgar as notícias. Há muitas formas de trabalhá-las.

Divulgadores e educadores têm conseguido trabalhar juntos pela popularização da ciência?
Quando nós, educadores científicos, não conseguimos transmitir a ciência como processo, estamos fazendo, na verdade, divulgação científica; o que fica é apenas a informação científica. São coisas que estão superpostas nas atividades dos educadores em ciência, cientistas, divulgadores de ciência e jornalistas. Acho que, se estes atores trabalharem juntos, o resultado certamente será melhor. Temos que achar uma maneira de cativar o público. Os divulgadores científicos e os professores de ciência têm sido muito ruins em difundir a ciência, e o povo está ávido por respostas. Eles acabam buscando respostas na igreja. Acho que falhamos nisso.


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