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Fundação Oswaldo Cruz

Oswaldo Frota-Pessoa

Efervescência na educação e divulgação da ciência

O Brasil foi palco, nas décadas de 1920 e 1930, de um grande surto pela melhoria dos métodos de ensino. Um dos marcos desse movimento foi a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935. Oswaldo Frota-Pessoa é testemunha desse momento histórico. Ele foi aluno da primeira turma de história natural da UDF, que carregava o lema “escola imitando a vida”.

“Ensinar era fazer o indivíduo trabalhar, e não apenas repetir o que outros descobriram”, conta o geneticista nesta entrevista concedida em duas etapas – a primeira feita por Bernardo Esteves, Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani, em agosto de 2002, e a segunda por Bernardo Esteves e Carla Almeida, em junho de 2004.

Frota-Pessoa fala dos quase setenta anos que dedicou à pesquisa, ao ensino e à divulgação de ciência e sobre como esses movimentos estavam fortemente associados no início de sua carreira, na década de 1940.

Ele lembra, ainda, de sua colaboração no “Ciência para Todos” – suplemento do jornal A Manhã, que circulou de 1948 a 1953, com uma média de 12 páginas dedicadas exclusivamente a assuntos de ciência. Essa iniciativa marcou, sem dúvida, a história da divulgação científica brasileira.

Leia aqui a biografia de Oswaldo Frota-Pessoa

Em 1935, o senhor cursava medicina na Universidade do Brasil quando decidiu entrar para o curso de história natural na Universidade do Distrito Federal (UDF). Por que tomou essa decisão?
Foi meio por acaso. Eu estava andando um dia pela Cinelândia, quando encontrei meu colega Newton Dias dos Santos. Tínhamos estudado juntos em uma escola no subúrbio do Rio, o Ginásio Arte e Instrução. Ele me contou que havia sido criado um curso de história natural na recém-inaugurada UDF e que estavam aceitando candidatos só até o dia seguinte. Como tínhamos entrado em medicina por gostarmos de biologia, por influência de nosso excelente professor Hernani de Brito, fomos correndo nos inscrever, já que surgia a oportunidade de estudarmos história natural. Entraram 18 alunos nessa primeira turma.

A UDF foi criada por Anísio Teixeira para seguir um novo modelo de ensino. Quais eram as novas metodologias propostas pela instituição?
Na década de 1930, desenvolveu-se um grande interesse pela melhoria dos métodos de ensino. No Distrito Federal, Rio de Janeiro na época, houve uma influência muito forte da escola norte-americana de pedagogia. O grande líder do movimento norte-americano era o filósofo John Dewey. Anísio Teixeira foi para os Estados Unidos fazer doutorado com Dewey. Quando voltou, divulgou no Brasil suas idéias e traduziu seus livros. O lema de Dewey era "escola imitando a vida", com um olho no social muito importante. Essa era uma proposta completamente diferente naquele tempo. Quando assumiu a Secretaria de Educação da Bahia, Anísio Teixeira fez uma boa adaptação dessa filosofia. Depois foi chamado para trabalhar no Rio e fundou a UDF, seguindo os ditames da Escola Nova. Procurou os melhores pesquisadores do Brasil em cada área para nomeá-los como professores da UDF, mesmo que nunca tivessem dado uma aula. Isso foi formidável.

O que caracterizava essa nova experiência educacional?
Os professores tinham exatamente o perfil proposto por Anísio Teixeira. Lauro Travassos, naturalista do Instituto Oswaldo Cruz, tinha um laboratório enorme com coleções de helmintos. Em nosso primeiro encontro, ele propôs que começássemos o estudo da zoologia pelos insetos. Ele nos deu um mês para colhermos uma coleção de insetos e estudá-la devidamente. Baseado em nosso estudo, ele fez uma síntese da evolução dos insetos. O professor Alberto Sampaio, chefe do departamento de botânica do Museu Nacional, em sua primeira aula, mostrou uma lista de famílias de plantas que não eram bem conhecidas no Rio de Janeiro e sugeriu que nos juntássemos em grupos para estudá-las. Newton Santos e eu escolhemos a família das saxifragáceas [“família de plantas floríferas, da ordem das rosales, constituída de ervas e arbustos cujas flores se congregam em inflorescências amplas e compactas” – definição do Aurélio]. Fomos para o herbário descobrir como a planta era seca. Depois fomos à caça da planta viva. Durante uma excursão a Teresópolis, subimos a cavalo o Campo das Antas e chegamos a um lugar que parecia ser onde encontraríamos nossa planta. Desmontei do cavalo e saí correndo para ser o primeiro a fazer a descoberta. Newton, fumando seu cigarrinho montado no cavalo, me gritou: "Frota, essa saxifragácea tem flores cor de rosa?" “Tem”, respondi. “Pois você amarrou seu cavalo nela!”. Esses exemplos mostram bem o conceito de ensino completamente novo que Anísio queria implementar, em que ensinar é fazer o indivíduo trabalhar e não apenas repetir o que outros descobriram.

Foi no curso de história natural da UDF que surgiu seu interesse pelo ensino?
Os 18 estudantes da turma se formaram e foram nomeados, pela prefeitura do Distrito Federal, professores. Fui dar aula de ciências no colégio Rivadavia Corrêa, no centro do Rio. Começamos a colocar em prática as novas técnicas de ensino. Eu me encontrava toda semana com alguns colegas em uma espécie de reunião científica, para contarmos as novidades que descobríamos.

Que efeito o novo método teve entre os professores?
O negócio pegou fogo nas escolas primárias do governo. Os professores começaram a atuar em suas classes com a técnica de Dewey, fazendo as crianças trabalharem por si mesmas. Anísio Teixeira e outros líderes formaram, na Associação Brasileira de Educação (ABE), um grupo de professores empenhados no aperfeiçoamento dos métodos de ensino. As novas técnicas foram divulgadas também em outros estados. Os professores saíam do Rio em um navio e faziam conferências sobre métodos de ensino em diversos portos. O resultado foi um surto de melhoria de ensino formidável.

Esse movimento teve, a seu ver, algum impacto direto na divulgação científica?
Imagino que sim. Não me recordo de uma época tão rica quanto aquela, em termos de divulgação da ciência. Formaram-se excelentes divulgadores, como José Reis. Os jornais mantinham colunas especializadas em divulgação científica, como o suplemento “Ciência para Todos” do jornal A Manhã, e minha coluna do Jornal do Brasil, “Ciência em Marcha”...

Qual foi sua primeira contribuição para a divulgação científica?
Foi em 1938. Eu tinha acabado de me formar. Escrevi um artigo e o enviei à revista Vamos Ler, a Veja daquela época. Fiquei esperando para ver se era publicado. E foi. Era um texto sobre genética, “Por que se parecem os filhos com os pais?” Mas a minha primeira contribuição jornalística foi aos 12 anos. Participei de um concurso promovido por O Jornal e eles publicaram meu conto infantil "Um presente de Natal".
 
Em que outras revistas colaborou?
Em 1937, uns colegas e eu fomos trabalhar na estação de piscicultura fundada por Rodolfo von Ihering, no interior de São Paulo. Começamos a escrever para o suplemento chamado “Folhas de Piscicultura”, da revista O Campo, que circulava na comunidade rural. Em cada número da revista saía artigos nossos. Escrevi também para a Revista da Semana, o Diário Carioca e para o suplemento “Ciência para Todos”, do jornal A Manhã. Antes disso, tinha uma coluna de xadrez no Jornal do Brasil, que depois me deu espaço para escrever uma coluna semanal sobre biologia chamada “Ciência em Marcha”. Na época, meu pai [José Getulio da Frota Pessôa] escrevia a coluna “Educação e Ensino” no mesmo jornal.

O “Ciência para Todos” foi uma iniciativa sem precedentes. Pela primeira vez, um jornal diário dedicava tanto espaço a assuntos científicos e durante tanto tempo. O senhor lembra como surgiu o suplemento?
Ernani Reis dirigia o jornal A Manhã. Muito interessado em ciência e divulgação – talvez por influência do irmão [José Reis] –, convenceu o dono do jornal a fazer um suplemento de ciência. O primeiro editor do “Ciência para Todos” foi Fernando Reis, sobrinho de Ernani. Ele fez um trabalho fantástico.

Qual era a periodicidade do suplemento?
Era mensal. Saía no último domingo de cada mês e tinha uma média de 12 páginas. Em cada número, saía o perfil de um grande cientista. Havia as seções “A piada científica”, “Ciência e Literatura”, “Ciência e propaganda”...

Qual era sua relação com Fernando Sousa Reis? Foi ele quem te convidou para colaborar no “Ciência para Todos”?
Foi. Eu conhecia o tio dele, José Reis. Através dele, Fernando entrou em contato comigo e convidou-me para escrever no suplemento. Falei com alguns colegas e eles chamaram outros interessados em colaborar – a maioria da UDF. Todos nós que escrevíamos para o suplemento estávamos envolvidos com pesquisa científica e entusiasticamente mobilizados na melhoria do ensino. Era uma forma de difundir as novas técnicas educacionais que foram testadas na gente. O “Ciência para Todos” foi um dos reflexos desse movimento do ensino.

Quem mais colaborava para o suplemento?
Era um grande grupo. Tinha Newton Dias dos Santos, Haroldo Travassos, Ayrton Gonçalves da Silva, Fritz de Lauro, Boavista Nery... A maioria meus colegas da UDF. Eu escrevia artigos sobre biologia.

O senhor mesmo escolhia o tema de seus artigos?
Os meus artigos de biologia faziam parte de uma série com temas escolhidos por mim. Eu procurava levar em conta o que era interessante para o público dentro de uma contextualização histórica.

O suplemento contava com respaldo da comunidade científica?
A recepção era muito boa. Ele tinha grande circulação entre os pesquisadores e entre os alunos universitários.

No suplemento, havia uma seção de cinema educativo... O cinema também era uma ferramenta que estava sendo experimentada no novo modelo de ensino?
O cinema educativo é, sem dúvida, uma ferramenta excelente de ensino. Um dos nossos colegas, Fritz de Lauro, era louco por isso. Uma vez por semana, convocava alunos de escolas da cidade, passava filmes e fazia comentários. Ele desenvolveu uma técnica de usar o cinema na educação que era muito interessante. Passava um filme e em vários trechos interrompia para perguntar: “O que vocês acham que vai acontecer agora?” Ele fazia uma mistura de cinema com conversa. Na década de 1930, Edgard Roquette-Pinto fundou o Instituto de Cinema Educativo (INCE) do governo. O INCE tinha um cadastro de filmes que eram franqueados aos professores. Pegávamos emprestados filmes para passar em sala de aula ou levávamos os alunos ao instituto para assistir aos vídeos. 

Naquela época, qual era a grande preocupação na hora de escrever e de falar para o público não-especializado?
Era uma aventura a vida da gente naquele tempo. Estávamos vivendo experiências novas no ensino e na pesquisa científica. Em nossos artigos, usávamos um estilo inspirado nas técnicas que utilizávamos profissionalmente. Para entender bem isso, é preciso lembrar que aquela época foi de grande evolução dos métodos de ensino. A fundação da Universidade do Distrito Federal marcou uma época por causa disso. Não era apenas uma universidade. A UDF foi a grande disseminadora de novas técnicas de ensino. Quando escrevíamos em jornais e revistas, pensávamos no interesse e na importância do assunto. Mas não pensávamos na forma. Escrevíamos com base na formação que tivemos. Fazíamos no jornal como fazíamos nas salas de aula.

Como eram tratados os alunos nessa nova maneira de ensinar?
Víamos os estudantes como células vivas em desenvolvimento. O que podíamos fazer era dar-lhes problemas e técnicas de trabalho para que aprendessem por si mesmos. Essa é a essência do Dewey. Formar um cidadão. Na verdade, a gente nem sabia que estava fazendo isso. Hoje, imagina-se que tínhamos todo uma técnica já pensada por trás, mas não tínhamos. O fato é que também nós éramos formados dentro dessa onda.

O senhor dedicou quase setenta anos da sua vida ao ensino. Que iniciativas destacaria?
A última coleção que escrevi, Os Caminhos da Vida [editora Scipione, 2001], mostra bem o que tentei fazer durante minha vida. Em Biologia na Escola Secundária – primeiro livro que escrevi, a pedido de Anísio Teixeira – já tinha a preocupação com a formação de professores. Ministrei cursos de reciclagem pelo Brasil afora. Na década de 1950, trabalhei dois anos na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, como especialista em ensino de ciências, ajudando a implantar na América Latina métodos de ensino mais eficientes. Fiz parte do comitê assessor da Organização Mundial de Saúde (OMS), como consultor em genética humana. Essas atividades forneciam material para novos livros e artigos, que publicava com discípulos e colaboradores.

Além dos livros, o senhor escreveu pelo menos 700 artigos de divulgação científica. Como o senhor avalia sua contribuição na área?
Meu trabalho de divulgação foi também inspirado na renovação dos métodos de ensino, pois a divulgação científica tem posição importante na educação continuada do adulto.

O que representou para o senhor ser o segundo brasileiro, depois de José Reis, a receber o Prêmio Kalinga, em 1982?
Surpresa. Eu tinha ganho um ano antes o Prêmio José Reis de Divulgação Científica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os documentos já estavam reunidos e foi fácil mandar tudo para Paris. Como havia muitos candidatos com pouca experiência, aconteceu de eles me escolherem.

Alguns dos estudos realizados sobre esses surtos de educação e divulgação científica mostram que eles são, até certo ponto, internacionais. Depois da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, cresceu significativamente o interesse pela divulgação e educação em ciência, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Esse surto teve reflexos no Brasil?
Houve realmente uma grande explosão, o que contribuiu enormemente para a melhoria dos livros didáticos. Essa explosão teve repercussão no Brasil também. No início dos anos 1960, Miriam Krasilchik, que foi vice-reitora da Universidade de São Paulo (USP), e eu fomos para os Estados Unidos colaborar com o grupo de trabalho que estava produzindo os novos livros didáticos de biologia, de acordo com as melhores técnicas pedagógicas. Passamos um mês na Universidade de Colorado com uns 80 especialistas norte-americanos. A idéia era elaborar material que colocasse o aluno em contato real com a ciência.

Como o senhor avalia a divulgação científica feita nos jornais e revistas nas décadas de 1940 e 1950 e a cobertura científica de hoje?
Mudou bastante. Naquele tempo, os divulgadores eram professores secundários ou universitários que gostavam de escrever. Ninguém era jornalista. Aprendíamos na prática. Não havia a sistematização que há, hoje, em uma sala de jornal. Tudo acontecia de maneira bastante informal. Os cursos de jornalismo abarcaram a tarefa de formar o divulgador científico. As equipes estão mais especializadas e experientes.

O senhor vê a profissionalização do divulgador como um aspecto positivo ou negativo?
Isso é muito positivo. É importante ter cursos de especialização em divulgação científica dentro das escolas de jornalismo.

Na sua opinião, por que os novos métodos de ensino, disseminados por Anísio Teixeira e por aqueles estudantes formados segundo a filosofia “escola imitando a vida”, não vingaram?
A minha opinião é de uma simplicidade trágica. Nos últimos 50 anos, a população escolar aumentou sem que se tomasse cuidado de melhorar a formação e, principalmente, o salário dos professores. Isso fez com que os que têm melhor nível procurassem trabalhos mais compensadores. A recuperação de níveis aceitáveis de ensino só pode proliferar mediante um esforço hercúleo para que se melhore sensivelmente a formação e a remuneração dos professores que continuam na profissão.

Biografia

Oswaldo Frota-Pessoa nasceu no Rio de Janeiro, em 1917. Aos 17 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da então denominada Universidade do Brasil. Na época, ainda não havia nas universidades cursos das matérias básicas, até que a Universidade do Distrito Federal (UDF) abriu um curso de história natural. Sem abandonar o curso de medicina, Frota-Pessoa se inscreveu no curso da UDF, que concluiu em 1938. Três anos mais tarde, formou-se na Faculdade de Medicina. Ainda em 1941, ingressou no curso de ciências biológicas aplicadas à medicina no Instituto Oswaldo Cruz.

A experiência na UDF, criada em 1935 pelo educador Anísio Teixeira como um laboratório para testar a então nova filosofia de ensino norte-americana baseada na aprendizagem pela prática – foi determinante na carreira de Frota-Pessoa. Fruto do novo surto pelo desenvolvimento do ensino, decidiu dedicar sua vida à pesquisa e à tarefa de disseminar as novas técnicas e metodologias de ensino pelo Brasil.

Em 1938, recém-formado em história natural, deu início à carreira de professor no sistema público de ensino do Rio de Janeiro. Paralelamente, começou a ministrar cursos de reciclagem de professores secundários por todo o país e a escrever livros didáticos.

Doutorou-se em história natural na Faculdade Nacional de Filosofia – que substituiu, em 1939, a UDF –, onde também foi professor.

Passou um ano, em 1953, na Universidade de Columbia, em Nova York, trabalhando sob a orientação do zoólogo e geneticista Theodosius Dobzhansky. Ainda nos Estados Unidos, trabalhou, em 1955 e 1956, para a Organização dos Estados Americanos (OEA) como especialista em ensino de ciências.

Em 1958, foi trabalhar no Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP), onde fundou o Laboratório de Genética Humana. Em São Paulo, deu prosseguimento à docência na Faculdade de Filosofia da USP.

Membro da Academia Brasileira de Ciências desde 1979, Frota-Pessoa foi, entre 1961 e 1986, consultor em genética humana da Organização Mundial de Saúde (OMS); entre 1968 e 1970, presidente da Sociedade Brasileira de Genética e, de 1969 a 1971, presidente da Associação Latino-Americana de Genética. 

Publicou cerca de 150 artigos de pesquisa, 50 sobre ensino e mais de 700 de divulgação científica.

É autor de 36 livros didáticos e 17 guias para professores. Recebeu, em 1981, o Prêmio José Reis de Divulgação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, um ano depois, o Prêmio Kalinga.

Faleceu em março de 2010, aos 93 anos.


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