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Fundação Oswaldo Cruz

Roberto lent

Brincar com a ciência em qualquer idade

Para inserir a ciência na cultura de um povo, é preciso que as crianças a interiorizem no colégio ou na idade escolar. “O Brasil é bom de futebol porque 90% dos meninos praticam o esporte. Que ótimo seria se essas crianças também estivessem envolvidas com ciência!” A analogia é do neurocientista Roberto Lent, que acredita que o país só conseguirá reverter o mau desempenho escolar quando a ciência penetrar de fato no ambiente que cerca a criança.

Autor de uma vasta produção acadêmica, Lent também encontra tempo para se dedicar à divulgação científica, tanto ao público adulto quanto ao infantil. Segundo o neurocientista, ambos espectadores precisam conhecer o encanto de se fazer ciência e a forma de se brincar com ela. Assim, terão consciência da importância do conhecimento científico e poderão transmitir essa percepção aos parlamentares, que aprovam as leis. Afinal, “as grandes questões da humanidade passam, em alguma medida, pela ciência”, opina o pesquisador.

Nessa entrevista, concedida em janeiro de 2009 a Marina Ramalho, Roberto Lent recorda o processo de concepção da revista Ciência Hoje e de seus frutos, a Ciência Hoje das Crianças e a Ciência Hoje On-line. Relata experiências pessoais variadas, como a elaboração de livros de divulgação científica para crianças – da série As aventuras de um neurônio lembrador – e sua adaptação ao teatro, além da criação de vinhetas de TV com temas científicos. Revela, ainda, os maiores desafios da editora Vieira & Lent, dedicada à publicação de livros de divulgação científica.

O cientista também faz uma análise da cobertura de ciência na mídia, dos mitos que rondam a atividade científica e fala da atual oferta de atividades de divulgação da ciência no Brasil.

Leia aqui a biografia de Roberto Lent

Qual foi a primeira atividade que você desenvolveu em divulgação científica?
Meu envolvimento com a área começou há mais de 30 anos, quando fui secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Rio de Janeiro. Nessa época, a SBPC tinha um papel importante de oposição à ditadura militar e estava desenvolvendo suas secretarias regionais, como forma de estimular a discussão entre pessoas da ciência e da cultura. Assumi a secretaria e reuni um pequeno grupo – estavam Ennio Candotti, Darcy Fontoura de Almeida, Alberto Passos Guimarães Filho, Otávio Velho... Não lembro de todos. Organizamos conferências gratuitas na Academia Brasileira de Ciências (ABC), o que, talvez, tenha sido minha primeira ação de divulgação científica, em 1976. Ainda hoje a SBPC promove conferências, como a série “Ciência às seis em meia”. No início, as sessões eram às 18h30, no Ministério da Educação, no centro do Rio, para atrair as pessoas que saíam do trabalho. Houve conferências também no Recife.

Como surgiu a idéia de criar uma revista de divulgação científica?
Com a experiência das conferências, pensei que seria interessante fazer uma revista de divulgação científica, porque os materiais de ciência disponíveis ao grande público, na época, eram muito precários. O que havia eram fascículos vendidos nas bancas, geralmente mal traduzidos do italiano e do espanhol, sobre corpo humano, universo ou coisas do gênero, sem qualquer participação da comunidade científica brasileira, que já estava crescendo nesse momento. Algumas bancas vendiam a Scientific American e havia outras revistas internacionais em inglês ou francês, como La Recherche. Começamos, então, a namorar essa idéia e a discuti-la informalmente.

Quando a iniciativa de criar a revista Ciência Hoje tomou corpo de fato?
Em 1978, fui aos Estados Unidos para fazer um estágio de pós-doutorado. Meu mandato na SBPC havia terminado, Ennio me sucedeu na secretaria regional do Rio e seguiu com a idéia da revista. Ainda na minha gestão, chegamos a criar um primeiro rascunho muito tosco de como seria a publicação. Mas foi Ennio quem deu concretude ao projeto e contatou o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à época, Linaldo Cavalcanti, em busca de financiamento. Na transição de 1981 a 1982 – eu ainda estava nos EUA – Ennio me telefonou e disse que havia conseguido verba do CNPq para produzir o número zero.

Depois de garantidos os recursos, como foi o processo de concepção da revista?
Ennio me encarregou de entrevistar editores de publicações dos EUA, para explorar o campo e levantar idéias. Nessa época, além da Scientific American, tinha a revista Discover, do grupo Time-Life, uma revista da Academia de Ciências de Nova Iorque e outra publicação, cujo nome mudava conforme o ano – era Science 81, Science 82 etc. – da American Association  for the Advancement of Science (AAAS). Fui aos editores dessas revistas e pedi entrevistas. Ao longo das conversas, me senti mal porque os editores questionavam: “Como vocês querem lançar uma revista em julho se já estamos em fevereiro? Vocês fizeram pesquisa de mercado?” Não havíamos feito nada e a idéia era lançá-la na reunião anual da SBPC. Segundo os americanos, àquela altura, tínhamos que ter cinco números já preparados. Mas eles também deram boas idéias. O diretor da Discover, Leon Jaroff, disse que a revista devia ter matérias de medicina, saúde e astronomia em todos os números, para atrair público.

A Ciência Hoje tinha algum diferencial em relação a essas publicações?
Pude perceber que todas aquelas revistas eram comandadas por jornalistas, com algumas variações. A Scientific American, por exemplo, tinha artigos escritos por cientistas, editados por jornalistas ou comunicadores. Já na Discover, todas as matérias eram de jornalistas. Os cientistas faziam apenas pequenos boxes. Hoje em dia, todas as revistas de divulgação científica são feitas por jornalistas ou empresas jornalísticas. Às vezes há organizações ligadas à ciência, a universidades ou sociedades, que contratam empresas de comunicação para fazer a publicação. Não tenho notícias de revistas desse tipo comandadas diretamente pela comunidade científica. Na Ciência Hoje tínhamos todo o comando do processo, tudo era feito – e é até hoje – por cientistas. Essa era a singularidade da nossa proposta na época. Sem demérito de outras iniciativas, mas nosso diferencial – dizíamos – era que íamos direto do produtor ao consumidor. Era um empreendimento que tinha origem na própria comunidade científica, embora passasse pelos comunicadores, obviamente.

Na sua opinião, o fato da Ciência Hoje ser uma iniciativa de cientistas é uma vantagem?
Há vantagens e desvantagens. A desvantagem é que lutamos até hoje contra certo hermetismo dos textos escritos por cientistas, o que é difícil de quebrar. O pesquisador acha que o conceito de vento solar, por exemplo, é algo conhecido por qualquer leigo e não te permite decodificar adequadamente os termos científicos. Em muitos casos, a revista tem artigos muito duros. Hoje, fazemos uma mistura: a maioria das matérias – 60% ou 70% - é feita por jornalistas e o resto por cientistas. Mas todo o comando do processo continua nas mãos dos cientistas.

A diretoria da SBPC apoiou a idéia da revista desde o princípio?
Foi difícil convencer a diretoria a nos autorizar a usar o nome da sociedade. Queríamos criar uma revista e pedir assinaturas, nossa intenção não era fazer uma edição única. Mas como podíamos pedir assinaturas se só tínhamos dinheiro para o número zero? O então presidente da SBPC era o Crodowaldo Pavan, que nos apoiou fortemente. Mas a vice-presidente, Carolina Bori, foi contrária porque achava arriscado. Ela propôs que fizéssemos a revista sem vinculá-la à SBPC. Mas, enfim, conseguimos concretizar o número zero.

A revista foi bem recebida pelo público?
A Ciência Hoje foi lançada em julho de 1982, era uma iniciativa nova e foi um sucesso na Reunião Anual da SBPC. Começamos com um número grande de pedidos de assinatura. A revista decolou porque teve boa adesão da comunidade científica, embora os principais cientistas desprezassem, à época, a divulgação científica e os jornalistas que tentassem atuar na área, pois dizia-se que erravam muito. Não havia, por parte dos jornalistas, uma tradição ou preparo especial para fazer divulgação científica. Por outro lado, a comunidade científica não tinha compreensão da atividade jornalística nem da relevância da divulgação científica.

A Ciência Hoje conseguiu alterar essa visão de alguma forma?
Os primeiros anos da revista foram muito bonitos porque, aos poucos, estimularam os cientistas a compreender a importância da divulgação da ciência e a enxergá-la como uma tarefa a mais da comunidade científica. Quem financia a ciência é a sociedade e, para isso, ela precisa estar consciente da importância da ciência. Estando convencida disso, a sociedade transmite essa idéia aos parlamentares, que aprovam as leis. Hoje, por exemplo, vemos que essa consciência talvez tenha protegido o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) de grandes cortes orçamentários provocados pela crise mundial da economia. Vários ministérios sofreram muito, mas o MCT e os ministérios da Educação e da Saúde foram os que menos sentiram. Isso reflete uma compreensão por parte da sociedade de que ciência e tecnologia são importantes.

É correto dizer, então, que atualmente a percepção dos cientistas sobre a divulgação científica é mais positiva?
Melhorou muito. Agora, as agências de fomento incluem a obrigatoriedade de ações de divulgação nos seus principais editais direcionados a projetos científicos grandes. O CNPq já tem um comitê assessor de divulgação científica. Os cientistas, assim, passam a ter uma compreensão maior. Hoje é mais fácil entrevistar um cientista. Vemos um número grande de pesquisadores falando com a mídia, escrevendo artigos em revistas e sites. A Ciência Hoje On-line tem umas 10 colunas escritas por cientistas. De parte a parte, houve uma quebra de gelo, embora isso não se aplique a todos os pesquisadores. No entanto, essas atividades não contam para avaliação no currículo Lattes, porque não há uma ênfase em atividades de divulgação ou educação científica. Assim, se o cientista está no início de carreira, não vai dedicar tempo a isso, porque não tem gratificação alguma de currículo.

Após o número zero da Ciência Hoje, de onde vieram os recursos para sua continuidade?
Conseguimos mais verba do CNPq e começamos a aceitar anúncios. Mais tarde recebemos recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e passamos, posteriormente, a explorar o mercado público com venda de assinaturas. A revista então se tornou o Projeto Ciência Hoje, já nos anos 80, quando outros veículos começaram a aparecer: a Ciência Hoje das Crianças – que a princípio foi um suplemento, encartado a cada dois ou três números, e depois se transformou numa revista independente – e o BBS (Bulletin Board System) sobre ciência, que era um antecessor da internet.

O que motivou a criação da Ciência Hoje das Crianças e da Ciência Hoje On-line?
O sucesso inicial nos fez pensar em outros projetos – chegamos a uma tiragem de 100 mil exemplares. Depois o número caiu, apareceram concorrentes. Hoje nossa tiragem é de 40 mil. Ennio, que dirigiu a revista por um longo período, é muito criativo, tem sempre idéias novas. Essa efervescência resultou na proposta de uma revista para crianças, embora eu não lembre exatamente de quem foi a iniciativa. Da mesma forma, veio a idéia de um boletim, precursor da internet, e a de um jornal para a comunidade científica, o Jornal da Ciência Hoje, atual Jornal da Ciência, que se transformou num órgão da SBPC, ligado à diretoria. Já o BBS (Bulletin Board System) se transformou na Ciência Hoje On-line. Posteriormente, passamos a produzir livros paradidáticos e, em seguida, um programa de formação de professores, que temos até hoje em vários municípios.

Como foi a transição do Projeto Ciência Hoje para o Instituto Ciência Hoje?
No final dos anos 80, deparamo-nos com uma dívida grande perante o INSS. A diretoria da SBPC queria se desvincular do projeto após resolver o problema financeiro, criando uma estrutura separada da entidade para gerenciar essas atividades. Mas insistimos que devíamos continuar ligados à SBPC, porque ela dava força ao projeto. Conseguimos convencê-los a voltar atrás e, então, surgiu o Instituto Ciência Hoje, que é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). A dívida do antigo Projeto Ciência Hoje ficou a cargo da SBPC. Mas, como se trata de uma sociedade, foi possível negociar com o Ministério da Previdência, de modo que a dívida atual é muito pequena e é paga mensalmente. Hoje, o instituto é superavitário e está bem financeiramente.

Que outras iniciativas de divulgação científica existiam quando surgiu a Ciência Hoje?
Houve, possivelmente, alguma iniciativa anterior à Ciência Hoje de editorias de ciência em grandes jornais. Mas o volume aumentou de forma significativa após os anos 80. É pretensioso dizer que foi motivado pela Ciência Hoje, mas com certeza o seu aparecimento contribuiu para criar um clima favorável à divulgação científica. A mídia se apropriou dessa idéia e cresceu o número de editorias de ciência na grande imprensa. A Folha de SP criou uma editoria muito forte, O Globo montou uma seção, assim como O Estado de SP. Também apareceram alguns programas de televisão, como o "Globo Ciência", da Fundação Roberto Marinho.

Você tem uma produção científica vasta e mantém muitas atividades paralelas de divulgação científica. Você já teve algum dilema ao buscar conjugar todas essas atividades?
Tenho diariamente, mas já me acostumei. Quando eu era aluno e comecei a fazer iniciação científica no Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), me tornei membro do Partido Comunista Brasileiro. Então, eu tinha que ir às reuniões do PCB e tinha que estar no laboratório. Quando estava no laboratório, me sentia culpado por não estar no movimento. E vice-versa. Depois, o Partido Comunista foi substituído pela divulgação científica e pela militância em política científica. Mas o conflito continuou. Hoje, sou diretor do Instituto de Ciências Biomédicas e, enquanto dou essa entrevista, me sinto culpado porque não estar no gabinete da diretoria. É claro que se paga um preço, porque o tempo é finito. Cientistas que têm todo o seu tempo vinculado à ciência têm uma produção científica maior que a minha. Mas é preciso admitir que há vários perfis profissionais na comunidade científica: o daqueles que são exclusivamente dedicados à ciência; os que fazem só divulgação científica; e os que conjugam as duas atividades.

Na sua opinião, algum desses perfis é melhor que o outro?
Os três perfis são úteis e a mistura deles é positiva, porque se aproveita o melhor de cada um. No meu caso – tenho uma profissão científica e faço divulgação – levo para a divulgação científica muito da minha vivência como cientista, o que é bom. Por outro lado, tendo a ser mais hermético que um comunicador, que foi formado e treinado para isso e que talvez escreva de modo mais atraente. Mas ele não tem a vivência científica que tenho.

Outra de suas iniciativas de divulgação científica é a Vieira & Lent casa editorial. O que motivou sua criação? Havia uma demanda por publicações desse gênero?
No Brasil, o movimento editorial de divulgação científica no formato livro era – e ainda é – muito dominado por traduções. Sai mais barato e mais fácil, para as editoras, traduzir uma obra do inglês do que fazer toda a produção editorial que demanda um texto de um autor brasileiro. Além disso, o povo não lê no Brasil e não me refiro só a temas científicos. As tiragens dos livros, com raras exceções, são de mil exemplares, o que é irrisório a níveis internacionais. As exceções são livros de Paulo Coelho, João Ubaldo, publicações de auto-ajuda e livros de generalidades. Literatura, cultura, ensaios e ciência não têm veiculação fácil no formato de livro. Isso é uma dificuldade que toda editora tem. A idéia da Vieira & Lent era publicar obras com ênfase em divulgação científica, produzidas por autores brasileiros, na linha do movimento que criou a Ciência Hoje. Quase todos os autores dos 60 títulos que já publicamos são brasileiros.

Qual é o maior desafio da editora?
Sobreviver. O mercado de livros é muito complicado, porque são as editoras que bancam o risco financeiro, pagam os direitos autorais, os profissionais envolvidos, o transporte, compram o papel e, depois, ainda arcam com os prejuízos se a obra não for vendida. A livraria aceita o livro em consignação em 90% dos casos, o que significa que, se ele não for vendido, é devolvido à editora, muitas vezes danificado, amassado e sujo. As livrarias só compram o livro quando a venda é garantida, como os do Paulo Coelho. Editoras que sobrevivem mais facilmente são aquelas que têm grande capital, porque investem em 70 títulos de uma só vez, o que dá mais garantias. Já as empresas pequenas, que lançam dois ou três títulos ao mês, têm muita dificuldade de chegar a um volume de vendas que lhes permita sobreviver.

É difícil encontrar cientistas que se disponham a escrever livros de divulgação científica?
Temos agora uma coleção de livros curtos, baratos, no estilo pocket, que se chama “Ciência no Bolso”. Nesse caso, é mais fácil encontrar autores, porque escrevê-los é quase igual a elaborar um artigo. Mas, se o cientista não está imbuído da idéia de fazer divulgação científica, ele não vai escrever um livro mais extenso, porque demanda muito tempo. Entretanto, já há mais gente querendo escrever. Temos uma oferta razoável de autores.

Como surgiu a idéia de escrever a série de livros infantis "As aventuras de um neurônio lembrador"?
Certa vez, participei do projeto “SBPC vai à Escola” e fui a uma escola da periferia de São Paulo num bairro pobre, para falar do meu trabalho a crianças de cinco a sete anos. Falei sobre neurônios durante 15 minutos. Eu havia decidido que, em vez de dizer “neurônio”, falaria “célula nervosa”, porque me parecia mais comum e que, assim, as crianças entenderiam melhor. Quando terminei, um menino me perguntou: “Tio, existe célula calma?” Então percebi que ele não tinha entendido nada e fiquei muito preocupado porque vi a grande distância que existia entre minha linguagem e a das crianças. Pensei, então, que eu tinha que fazer alguma coisa. Foi quando surgiu a idéia de um livro infantil, que foi amadurecida ao longo de muitos anos, sem que eu conseguisse concretizá-la, porque não tinha tempo nem sabia como fazer. Até que saiu e virou peça de teatro e quadrinhos.

Como foi o processo de adaptação das histórias para o teatro?
Logo que o primeiro livro da série foi publicado, O Neurônio Apaixonado, fui procurado por um grupo do Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e a Juventude (CBTIJ), que queria transformar a obra em peça de teatro. Fiquei encantado, achei o máximo. Depois, meus outros livros foram sendo lançados e o grupo foi em busca de patrocínio. Fazer teatro é difícil porque os patrocinadores escolhem peças que tenham um impacto de público maior e que sejam leves, geralmente comédias. Depois de muito procurar, o grupo conseguiu patrocínio da Oi, que possui um teatro no Flamengo, o Oi Futuro. Com isso, eles contrataram uma roteirista muito talentosa, Claudia Valli, que fez a adaptação dos livros para o teatro. O roteiro, então, foi feito por uma profissional e revisto por mim. Interagimos muito, mas ela é quem tem o mérito da peça. O grupo fez toda a produção, a parte de animação, cenário etc. Gostei muito do resultado, fui assistir mais de uma vez.

E os quadrinhos?
O ilustrador dos livros, Flávio Dealmeida, teve a idéia. Ele desenhava para a revista MAD e tem muito humor no traço. Criei os temas, ele ilustrou e eu revisei. Primeiro foram publicados na Ciência Hoje das Crianças On-line. Depois, consegui verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RJ (Faperj) para transformá-los em pôsteres, que foram distribuídos às escolas. Um dia, fui a um colégio da Ilha do Governador e vi meu pôster no quadro de avisos. Muito legal.

Na sua opinião, qual é a importância de se divulgar ciência para crianças?
É fundamental. Para inserir a ciência na cultura de um povo, é preciso que as crianças a interiorizem na escola ou na idade escolar. No Brasil, é possível fazer a seguinte analogia: por que o país é bom em futebol? Porque 90% da população de meninos jogam ou já jogaram futebol. Logo, entre 40 milhões de crianças que joguem futebol, a probabilidade de se encontrar talentos é altíssima. Que ótimo seria se houvesse 40 milhões de crianças envolvidas com ciência! Um bom exemplo disso é a Olimpíada Brasileira de Matemática, organizada pela Sociedade Brasileira de Matemática nas escolas do país e que, atualmente, conta com cerca de 15 milhões de crianças. Nela se pode descobrir talentos, como ocorreu há alguns anos, quando o primeiro colocado foi um menino do interior do nordeste, deficiente físico, cuja habilidade só foi conhecida graças à competição e à adesão de milhões de crianças. Quando não se tem isso, o resultado é inverso: programas internacionais que medem a competência da população infantil em ciências e matemática situam o Brasil nos últimos lugares. É um vexame. As crianças saem da escola sem saber o elementar. Só vamos conseguir mudar esse quadro se a ciência entrar na escola e na família.

Quais são as dificuldades para que a ciência atinja as crianças?
Há mil dificuldades: não há livros nem dinheiro para comprá-los, os professores são muito mal formados, não sabem transmitir ciência de forma atraente e não temos veículos que transformem a ciência em algo lúdico, agradável. A ciência não está presente no ambiente que cerca a criança.

Falando mais amplamente, o que o cientista deve levar em consideração quando fala de ciência para o público leigo?
O primeiro pressuposto fundamental é que ele precisa ser entendido, logo tem que adaptar sua linguagem ao público com quem fala, sem infantilizar o receptor. Encontrar o tom certo talvez seja a maior dificuldade. O segundo aspecto é a necessidade de transmitir ao público o encanto de se fazer ciência, ou seja, seus métodos, que são a forma de se brincar com a ciência. Isso nos leva a quebrar uma série de mitos: por exemplo, o de que o cientista é sempre uma pessoa genial, mais velha, meio excêntrica e que faz careta na fotografia. Isso afasta as pessoas, pois pensam que não se enquadram nesse perfil: “Ciência não é para mim nem para minha família, porque não somos geniais”. Isso precisa ser quebrado, porque não é verdade. Existe cientista burro. O cientista é apenas uma pessoa que teve um treinamento específico, assim como um artista plástico ou um jornalista. A queda do mito do cientista genial é uma obrigação. Por isso, quando faço uma publicação, sempre ponho fotos do pesquisador com seus filhos, em situação corriqueira, num lugar público e sem jaleco, para que fique claro que se trata de uma pessoa comum.

Você tem estratégias para avaliar a eficácia das suas atividades de divulgação científica?
São informais, não tenho instrumentos sistemáticos. Custa caro fazer uma pesquisa de opinião sobre o impacto da Ciência Hoje ou da peça infantil, por exemplo. Faço uma avaliação informal, vou à peça e observo as crianças, vejo se estão gostando ou se estão dormindo. Para verificar a aceitação dos livros, procuro saber se são vendidos ou não. Mas isso não diz muito, porque há livros excelentes que não são vendidos porque são caros. É complexo.

Como é sua relação com os jornalistas, tanto os da Ciência Hoje como aqueles que te entrevistam para outros veículos?
É boa, estou habituado, falo diante da câmera sem problemas. Mas, em geral, o cientista tem medo do jornalista e, às vezes, é hostil. Acha que vão deformar o que ele disser. Além disso, o jornalista está sempre com pressa e o cientista trabalha lentamente. Quando um cientista afirma algo significa que ele pensou muito sobre aquilo e realizou experimentos de comprovação. Já o jornalista precisa entregar sua matéria em duas horas, não pode enviar o texto para o cientista corrigir, porque ele vai demorar e a matéria perde atualidade. Há um conflito de tempo.

Na Ciência Hoje, cientistas e jornalistas têm muitos conflitos de idéias?
Entre os jornalistas da equipe não temos conflitos, mas temos com cientistas que colaboram com a revista. Se eles escrevem e ninguém entende o conteúdo, eles ficam zangados e os jornalistas que fazem a interface com eles ouvem reclamações. Há menos conflitos por parte dos jornalistas da revista, porque são especializados na área e estão preparados para isso. Acho que há mais preconceito contra os jornalistas do que contra os cientistas.

Na sua opinião, que papel o cientista deve desempenhar na divulgação científica?
Vale tudo. Ele pode falar com a imprensa, escrever artigos, livros, peças de teatro, participar de museus... Se ele for criativo, encontrará uma forma de divulgação científica. Certa vez, na Ciência Hoje, pensamos em botar uma faixa naqueles aviões que sobrevoam a praia, para que as pessoas pudessem colocar frases sobre ciência. Não sei se daria certo, mas é uma idéia, mesmo que louca. Os clips que veiculamos na TV Globo foram uma idéia que surgiu assim.

Como foi o processo de criação dessa campanha publicitária, a “Ciência vale a pena”?
O Instituto Ciência Hoje propôs uma parceria ao MCT e à Rede Globo e eles toparam. A Rede Globo não cobrou pela veiculação das vinhetas nem por sua concepção. Já a Finep arcou com os custos de produção, como contratação de atores, cenários, filmagem. Foi uma experiência sensacional, gostei muito. Ildeu de Castro Moreira e eu pensamos em 20 tópicos que queríamos abordar, como “ciência é juventude”, “ciência é inserção social”, “ciência é cultura”, e discutimos com a Central Globo de Comunicação quais seriam as mais importantes, pois só havia dinheiro para oito produções. Depois, pensamos o que queríamos comunicar com aquelas frases. Por exemplo, “ciência é controvérsia” era um tópico importante porque o público acha, geralmente, que ciência gera verdade e não entende que haja dúvidas e diferenças de opinião na ciência. Os profissionais da Globo, então, transformaram as mensagens em clips de 30 segundos, com roteiros que eles discutiram conosco antes da empresa produtora realizar a produção.

Você já comentou o papel do cientista na divulgação científica. E o do jornalista? Qual é o seu papel nesse campo?
Também é fundamental, porque não há divulgação científica sem o jornalista, seja como mediador entre cientista e público, seja como produtor. Existe um espaço muito amplo para as notícias de ciência. Mas destaco que o jornalismo científico é uma especialidade dentro da profissão, da mesma forma que há jornalismo econômico ou cultural. Porque o jornalista precisa conhecer um pouco do processo de se produzir ciência, saber quem é o cientista e como extrair informação dele. Por isso, é interessante que as escolas de comunicação tenham programas de formação de jornalistas de ciência, porque é fundamental que eles existam.

Como você avalia a cobertura de ciência no Brasil?
Em quantidade, é fraca para padrões internacionais, embora tenha melhorado. Se tirarmos os principais jornais – O Globo, Folha de SP e O Estado de SP –, acaba a cobertura. Talvez O Estado de Minas e o Jornal do Brasil tenham alguma cobertura de ciência, não sei bem. Os outros compram matérias dos veículos maiores. Em termos de qualidade, porém, não diria que a cobertura é fraca, porque existem matérias excelentes. O Estadão e a Folha têm coberturas muito boas e repercutem as notícias científicas com competência. Em televisão, um dado importante foi identificado na tese de doutorado da jornalista Lacy Barca – orientada por mim –, em que ela faz um levantamento da presença de ciência no "Jornal Nacional", no "Jornal da Record" e no telejornal norte-americano "World News Tonight". Ela verificou que o percentual de tempo ocupado pela ciência no "Jornal Nacional" é cerca de 14% do tempo líquido – tirados os anúncios –, uma presença que rivaliza com política e esporte. No que diz respeito aos programas de divulgação científica na TV, no entanto, eles estão aquém do desejável em quantidade. Há o "Globo Ciência", que se mantém no ar há vários anos, e o "Globo Universidade", mais recente. Ambos são de boa qualidade – o Instituto Ciência Hoje presta consultoria para o "Globo Universidade" –, porém veiculados em horários de pouca audiência. A ciência não está presente nos horários nobres.

E como você enxerga as atividades dos centros e museus de ciência?
Essas instituições cresceram muito e houve uma evolução dos antigos museus passivos, contemplativos, para museus e centros mais interativos. Essa expansão, assim como a das outras mídias, reflete o crescimento da ciência no Brasil. Houve o aumento do jornalismo científico, da divulgação científica autônoma, dos museus de ciência, da oferta de recursos por parte das agências etc. A importância de haver várias frentes paralelas de divulgação científica é que, assim, é possível explorar diferentes preferências do público. Abre-se o leque e, quando há uma variedade de opções, consegue-se atingir o público mais amplamente. Para uma criança, talvez seja mais divertido ir a um museu interativo do que ler meus livros infantis. Ou outra criança pode preferir os livros e a peça teatral. Será mais fácil despertar o interesse do público se forem promovidas ações com formatos diferentes. Assim, as pessoas têm acesso à ciência quando ligam a televisão, quando vão ao teatro ou ao museu, quando lêem uma revista ou compram um livro. Todas as opções de personalidade e preferências de gostos são contempladas.

Existe algum veículo que você considera mais eficaz para divulgar ciência?
A televisão, pela vasta abrangência de cobertura, sobretudo no Brasil, onde praticamente toda casa tem TV, o que significa 80% ou 90% da população. A Rede Globo nos informou, com base nos dados sobre audiência acumulada dos nossos clips, que mais de 100 milhões de pessoas viram pelo menos uma das vinhetas. Por outro lado, é preciso considerar que foram 30 segundos de informação que se esvaíram no ar. É diferente de quando lemos um livro ou vamos ao teatro. Nesses casos, atingimos um público menor, mas talvez a informação se consolide melhor na mente das pessoas.

Há muitas pessoas que defendem a necessidade de se estimular e viabilizar a participação da sociedade nas decisões relacionadas à C&T. O que você pensa sobre isso?
É super importante e constitui uma das razões pelas quais a divulgação científica é crucial. Por exemplo, recentemente, o público participou muito da discussão em torno dos transgênicos, das células-tronco embrionárias e da elaboração das respectivas leis. Também houve repercussão grande de alguns temas, como a discussão da eutanásia e do aborto, embora tenham tido um ibope menor. Saindo das ciências da vida em direção às ciências físicas, por exemplo, surgem as questões da energia nuclear e do meio ambiente. As grandes questões da humanidade, hoje em dia, têm alguma passagem pela ciência. Portanto, para que as sociedades possam definir regras a esses temas – através dos seus parlamentos, principalmente – é preciso que tenham um grau mínimo de instrução ou de conhecimento sobre os aspectos científicos desses problemas. Se o povo não é educado e não tem acesso à informação, como vai decidir? Alguém decidirá por ele, num processo muito menos democrático. A divulgação científica propicia uma permeabilidade da informação em níveis mais populares, o que é crucial e demonstra sua importância social e política. Quando o uso das células-tronco embrionárias estava em discussão no Supremo Tribunal Federal, discutiu-se em que momento começa a vida. O problema tem um lado científico, mas também filosófico. O ministro Carlos Alberto Direito (do Supremo Tribunal Federal), veio ao Instituto para conversar conosco sobre nosso ponto de vista para a questão. Essa é uma discussão muito complexa e houve grande participação popular, embora mais restrita a segmentos da classe média mais informada.

Você vê positivamente a profissionalização do divulgador científico?
Não só me parece positiva como necessária. Para jornalistas, é uma especialidade dentro da comunicação que tem aspectos muito específicos. Defendo que o jornalista científico tenha algum tipo de vivência dentro dos laboratórios, para ver como são feitos os experimentos e como é a discussão dos problemas. Nesse sentido, também seria interessante se alunos de pós-graduação em ciência fizessem algum tipo de estágio em escolas de comunicação, redações de jornais ou estúdios de TV. Assim, poderiam compreender como é a natureza do trabalho do jornalista e ver por que há urgência na apuração das informações.

Então você acha que é possível ser um bom divulgador científico sem ter formação em ciência?
Sim. Eu, que sou médico de formação e milito em biologia, não sei nada de física nem de matemática. A ciência é vasta demais para que o cientista conheça tudo. Por isso, não acho que o jornalista precise fazer cursos científicos nos mesmos moldes que o cientista. Um mínimo de informação ele precisa ter, mas vai adquirindo mais conhecimento ao longo da sua prática. Repito, porém, que ele deveria ter alguma vivência da atividade científica.

Na sua opinião, quais são os principais desafios da divulgação científica hoje no Brasil?
De modo geral, já construímos uma estrutura mínima de divulgação científica no país: há museus, editorias de ciência, revistas, sites, programas de TV etc, embora essas iniciativas ainda precisem ganhar músculo, pois o país terá 200 milhões de habitantes em uma década, o que demanda uma presença muito maior em todos os estados, cidades e mídias. O principal desafio que vejo não diz respeito propriamente à divulgação científica, mas à educação em ciência. Precisamos atingir a criança, tanto na escola como fora dela. Nossa entrada na escola – a de quem trabalha com ciência, seja divulgador, cientista ou professor – é muito precária e precisamos mudar isso.

Biografia

Formado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1972, Roberto Lent completou o mestrado (1973) e o doutorado (1978) em ciências biológicas na mesma instituição. Enquanto finalizava seu pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos, aproveitou para entrevistar editores de revistas científicas e reunir idéias que o ajudassem a criar a revista Ciência Hoje – da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) –, que fundou junto com outros colegas na Reunião Anual da SBPC de 1982.

Não demorou para que o projeto gerasse desdobramentos – a Ciência Hoje das Crianças, Ciência Hoje On-Line, Jornal da Ciência Hoje e a série Ciência Hoje na Escola. Mas as atividades de divulgação científica de Lent não se limitaram ao Instituto Ciência Hoje, do qual é diretor adjunto. Em 2004, o neurocientista escreveu seu primeiro livro para crianças – O Neurônio Apaixonado –, que deu origem a uma série e virou obra de teatro, "O Neurônio Apaixonado ou O que Você tem na Cabeça, Menino!", montada em 2006 e 2008.

Antes disso, o pesquisador já havia inaugurado a Vieira & Lent casa editorial em 2002, para “promover a aproximação entre a ciência e a sociedade” ao publicar livros de divulgação científica, escritos, sobretudo, por cientistas brasileiros.

Lent também se aventurou na televisão, ajudando a conceber, juntamente com uma equipe da Central Globo de Comunicação e com apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia, a campanha publicitária “Ciência vale a pena”, exibida pela emissora em 2004. Dois anos mais tarde, as vinhetas renderiam ao Instituto Ciência Hoje o prêmio especial do Festival de Cinema e Vídeo Científico do Mercosul. Uma nova premiação seria concedida diretamente ao pesquisador em 2007, dessa vez pela Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS em inglês) na categoria Public Understanding and Popularization of Science.

Roberto Lent é professor titular da UFRJ desde 1992, onde já foi chefe de departamentos e laboratórios e onde, hoje, dirige o Instituto de Ciências Biomédicas.


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